terça-feira, 12 de novembro de 2013

Fagulha no palheiro

 
Basta uma mensagem,
uma notícia.
Na palha seca
do celeiro
do Cerrado, 
vira centelha.
Uma centena
de dias, de anos,
nessa secura,
não servirá
a impedir a fagulha
de queimar
todo o palheiro
e deixar só a agulha.

(poema íntimo)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Edição especial de aniversário.


Hoje acordei quase esquecendo do meu aniversário.
Queria dar-me, eu mesmo, os parabéns.
Desejar-me, eu mesmo, felicidades.
Dar-me um aperto de mãos com minhas próprias mãos.
Dar-me, eu mesmo, tapinhas nas costas.
Afagar-me, com os meus dedos, os cabelos.
Olhar-me nos meus próprios olhos com um olhar amigo.
Sorrir-me com meus próprios dentes.
Desejar-me, eu mesmo, votos de sucesso.
Abraçar-me, eu mesmo, calorosamente.
Dar-me, de mim para mim mesmo, apenas uma lembrancinha, repare não!
Dizer-me, eu mesmo, cinicamente, puxa! você emagreceu!
Telefonar-me, de longe, proclamando saudades de mim mesmo.
Postar fotinhas antigas de mim abraçado comigo, dos tempos em que andávamos juntos, unha e carne.
Relembrar das piadas que ouvi de mim mesmo, do sorriso que dei a mim mesmo um dia, dos momentos inesquecíveis que tive ao meu lado e das barras que passei e eu não me abandonei.
...
Mas na minha casa não há espelho.
Não me vejo cara a cara para dar os parabéns, e nem enxergo meus dentes quando sorrio.
Minhas mãos só trocam apertos de forma desconjuntada.
Não alcanço meus ombros com minhas mãos,
Não alcanço, com meus tapas, as minhas costas.
Se levo as mãos à cabeça, não é para afagos.
Porque preciso do outro, vejam só!
Para tudo isso e muito mais.
Para me refletir no outro e nele aprender.
Para com ele cair, com ele levantar e com ele seguir.
Para a ele dar e dele receber parabéns, amor, dor, seja o que for...



sábado, 5 de outubro de 2013

Distância invertida



Há uma forma especial de saudade
quando se está perto e longe num mesmo instante.
Saudade que passa em frente a uma certa janela,
e torce o pescoço ao ver um certo carro.
Apura os ouvidos para ouvir falar de alguém pelos cantos.
E se não se ouve num canto,
vai-se a outro onde se ouça.
Se um filme, uma canção, um livro, 
um lugar, um cheiro, uma cor,
nos faz lembrar,
espreita-se sem se convidar,
e se imagina o que não se quer nem sonhar.

Há uma forma especial de mudez
quando se quer mas não de pode falar.
Grita-se sem o grito bradar.
E quando brada, não se ouve ecoar.
Escreve-se o que nunca é lido.
Aquelas cartas alimentando a fogueira ou em pedaços.
Por favor, leia antes de queimar...
ou rasgar.

Há uma forma especial de cegueira
quando a lua cheia não clareia.
Ainda que se veja, não se quer enxergar.
Você crê e não quer duvidar.
Lê sem nada assimilar.
Avança, quando é melhor recuar,
e não se aprende que é melhor nem tentar.
Não siga em frente! Melhor parar!

Há uma forma especial de ansiedade
quando a manhã seguinte não quer raiar.
Os olhos abrem e não se quer levantar.
O sangue corre sem querer estancar.
A chaga não fecha,
tudo é só pressa,
Resta só dúvida,
e angústia.

Há uma forma especial de solidão
quando se está perto e longe no mesmo instante.
Quando àquela janela há mais de uma sombra.
Quando naquele carro há uma carona.
Quando se ouve falar de alguém com mais alguém pelos cantos.
Quando certas coisas nos fazem lamentar.
Quando se espreita para constatar.
Quando se percebe que não cabe sonhar.


terça-feira, 9 de julho de 2013

Jack Kerouac - On The Road


Minha relação com a estrada sempre foi de paixão. Como todo menino, colecionava meus carrinhos de ferro. Ainda adolescente, partia em road trips de fim de semana com a prancha no teto do velho Passat, o carro cheio de amigos e daquela insensata alegria juvenil. Mais velho, troco as quatro rodas por duas e entro num motoclube. De moto, a estrada fica mais próxima, sente-se o asfalto correndo por baixo e o vento por cima. À frente, as linhas tracejadas hipnotizantes.
Tantas histórias foram contadas sobre a estrada que surgiu um novo gênero no cinema: o road movie. Pois bem, On The Road seria um road book? Era o que eu achava, mas há muito mais por trás das linhas do livro de Kerouac do que apenas as linhas tracejadas da estrada. A estrada de Kerouac é mais que a estrada do asfalto: é a estrada da vida. Nas entrelinhas da estrada de Kerouac vejo um debate profundo sobre a juventude, o conflito de gerações, o questionamento do que é ou não realmente importante, a adoração à música e às artes, a crítica ao vazio cultural, a abordagem de temas como sexualidade, solidariedade, amor, amizade, drogas, a relação entre pais e filhos, os traumas de infância, a busca pelo pai ausente, a felicidade real e a relação do ser humano com o dinheiro. Tudo isso não cabe entre as linhas de uma estrada, expande-se para além em todas as direções e acima, abaixo e para dentro de nós mesmos.
A profundidade do livro me impressionou. O tema da estrada é um disfarce para tudo isso e ao mesmo tempo uma metáfora brilhante. A estrada da vida é mesmo uma estrada, uma estrada vicinal e esburacada, com muitas curvas, desvios e retornos, e poucas retas. E a estrada só termina com a morte. “Ao infinito e além...”, ainda que em círculos! Esse é o movimento que se vê em “On The Road”.
O livro foi escrito em um parágrafo único com cerca de 125 mil palavras, num rolo de papel de 36 metros. A estrada de Kerouac estava não apenas no conteúdo, mas também na forma do próprio manuscrito. A propósito, Kerouac relutou em modificar a forma original do livro e apenas devido à enorme pressão do editor fez as modificações que tornariam o livro mais “digerível”.
Como nos mostrou a história da literatura, os escritores que ousaram na forma, e Kerouac não foi exceção, só tiveram suas obras reconhecidas e plenamente aceitas décadas depois. O estilo de grandes parágrafos e orações, sem quebras para diálogos, foi mais tarde copiado por autores como José Saramago (que foi além, suprimindo até mesmo as aspas).
On The Road não apenas agrada pelo conteúdo, mas também inova no formato, e tudo ali parece estar relacionado à idéia de velocidade, necessária à perfeita assimilação do que Kerouac queria dizer com a metáfora vida-estrada.
A história começa quando Jack e Neal se conhecem, logo após a morte do pai de Jack. Neal procura Jack, a princípio, numa tentativa de se tornar um escritor (como todo grande livro, On The Road é repleto de referências à literatura), mas Kerouac já induz a uma interpretação mais complexa dessa amizade: Jack diz a Neal: “Porra cara sei muito bem que você não me procurou porque tá a fim de virar escritor...” Neal passa a vida a procurar o pai ausente. A amizade dos dois apresenta esse elo de ligação importante, explorado ao longo de toda a narrativa. A ligação mental entre Jack e Neal é reforçada através de vários recursos do autor, como a repetição vista na frase final do livro (falo disso mais adiante). Jack é obcecado por Neal, e essa obsessão é recíproca. A história não é sobre Neal ou sobre Jack; é a história dos dois e da amizade entre eles, amizade essa que se manifesta sobre o asfalto, sobre quatro rodas.
Kerouac vê a estrada como um rumo à frente, uma direção inevitável e irretornável, onde tudo está à frente e nada resta atrás. Mas, se por um lado Kerouac aponta nossos narizes sempre para frente em passagens como no momento em que chega a Hollywood: “Nada atrás de mim, tudo à minha frente, como sempre acontece na estrada”; por outro, volta e meia insere obstáculo intransponíveis. O oceano é um deles e obriga ao fim e retorno do viajante. Kerouac planeja zarpar num navio, mas essa viagem nunca acontece. O bate-e-volta nas costas leste e oeste lembra uma versão motorizada de Forrest Gump. “Era o fim do continente, nada mais de terra.” A necessidade de retornar ou de desviar da rota é um elemento recorrente na história. A primeira viagem de Jack é planejada cuidadosamente sobre uma reta: a Rota 6, que nasce no Nordeste dos EUA e desce em diagonal até a Califórnia. Jack perde o mapa, o rumo e a esperança de uma execução conforme planejado logo no início da empreitada. Outra viagem, dessa vez ao México, começa dessa forma: “Ali estávamos nós a caminho das desconhecidas terras do sul e a apenas cinco quilômetros da nossa cidade natal, a velha e pobre cidade da nossa infância, quando um estranho e exótico inseto febril levantou-se de misteriosas corrupções para inocular o temor em nossos corações.” Jack refere-se a um inseto que pica o braço de Frank, um dos companheiros de viagem. Aqui mais um simbolismo que talvez represente a mensagem maior do livro: a vida é feita de ações e reações às circunstâncias e quase nunca seguimos pela trilha que marcamos previamente no mapa de nossas vidas. Ou nem sequer sabemos de antemão aonde queremos ir. Ao passarem por Chicago, Neal exclama, eufórico, “Uau! Jack temos que ir e não parar de ir até chegarmos lá.” Jack pergunta “Aonde vamos homem?”, e Neal responde “Não sei mas temos que ir.”
Outra recorrência é a casa de Jack (a casa de sua mãe, em Nova York), seu porto seguro. Em cada viagem, o carro utilizado era parcial ou totalmente destruído, e ao fim de cada viagem sempre se voltava ao ponto de origem sem se saber ao certo o que foi ganho ou por que se fez a viagem. As peças e parachoques que caiam pelo meio do caminho eram os pedaços do próprio Jack: “Onde é que estava a vida? Eu tinha minha casa para ir, meu lugar para descansar a cabeça e calcular as perdas que havia sofrido e calcular o ganho que sabia estar também em algum lugar.”
E Jack queria mesmo parar em algum lugar: “Quero me casar”, ele diz a Neal e Louanne, “e assim poderei descansar meu espírito ao lado de uma garota até que nós dois fiquemos velhos. As coisas não podem continuar assim indefinidamente... todo esse frenesi e essa agitação toda. Temos que chegar a algum lugar, encontrar alguma coisa.” Aliás, a vida familiar é enaltecida por Kerouac em outras passagens, como, por exemplo, quando diz que a paz desceria à terra quando os homens voltassem para casa e pedissem perdão às suas mulheres. Em outro momento, Kerouac eleva a família como objetivo maior da vida: “Toda minha vida arruinada girou diante de meus olhos fatigados, e percebi que não importa o que você faça está fadado a ser uma perda de tempo no fim das contas e você pode muito bem ficar doido. Tudo o que eu queria era afogar minha alma na alma de minha mulher e alcançá-la por meio do emaranhado de mantos que é a carne no leito.” A busca pelo amor aparece também no momento em que, parado numa estação rodoviária, Jack vê passar uma mexicana linda: “Uma dor apunhalou meu coração, como acontecia sempre que via uma garota que eu amava indo na direção oposta nesse nosso mundo grande demais.”
Ao falar de buscas, de amor e de amizade, Kerouac critica os valores da sociedade americana da década de 1940. Vemos Kerouac ironizar a intelectualidade. Também o vemos falar da facilidade da nova geração em fazer novas amizades, obviamente como contraponto à visão hermética e alterofóbica da geração anterior: Jack está “preparado para qualquer espécie de amizade humana” e, de fato, se relaciona com bêbados, prostitutas e vagabundos com a mesma naturalidade com que o faz com intelectuais e famílias “tradicionais”. O conflito entre vagabundos e “cidadãos normais” é colocado com humor. Big Slim Hubbard (segundo Kerouac, um “vagabundo por opção”) é introduzido na história dessa maneira: “quando criança [Big Slim Hubbard] tinha visto um vagabundo se aproximar e pedir um pedaço de torta à sua mãe, e ela lhe deu, e quando o vagabundo sumiu na estrada o garotinho perguntou, “Mãe quem era esse homem?” “Ora é um vagabundo.” “Mãe, quero ser vagabundo um dia.” “Cale a boca, isso não é coisa para os Hubbards.”
A vida segundo Kerouac é uma vida sem mapas, sem bússolas e sem navegadores GPS. É uma vida sem rumo. Não se sabe direito o que se busca, ou se busca o amor mas não se sabe onde ele está e qual a sua forma. E estamos todos conectados. Não somos indivíduos sozinhos no mundo, ainda que sejamos solitários. Estamos conectados à família, aos amigos, ao passado, ao pai ausente, aos bêbados desconhecidos com os quais esbarramos nas sarjetas. Neal representa essa conexão de Jack com o mundo, e esse é o elemento fundamental do livro, sua linha narrativa essencial. O livro começa falando de Neal Cassady: “Encontrei Neal pela primeira vez não muito depois que meu pai morreu...”. E termina no triste último encontro entre os dois amigos-irmãos, encontro no qual há o desencontro espiritual, o rompimento fatal que reinsere Jack em sua própria vida individual. Jack finalmente se liberta de Neal, mas seu pensamento não abandona jamais o amigo, cuja imagem deverá martelar em sua mente para sempre, ressonância simbolizada pela repetição da última frase do livro: “[...] eu penso em Neal Cassady, eu penso até no Velho Neal Cassady o pai que jamais encontramos, eu penso em Neal Cassady, eu penso em Neal Cassady.”
Tal como Jack e Neal, indo e voltando, batendo e rebatendo, esse livro é para ser lido e relido, e ele pulsará na mente do leitor para sempre. Desde que o li, eu penso em Neal Cassady, eu penso em Neal Cassady...

terça-feira, 30 de abril de 2013

Meu romance com os romances

Há quem goste de contos. Há quem goste de crônicas. Outros amam a poesia. Mas há quem prefira, como eu, romances.
Claro que me divertem as curruíras nanicas do Dalton Trevisan, os contículos pulguentos do Charles Bukowski e a cadeira de balanço do Carlos Drummond de Andrade. Também contos maiores, clássicos, do Anton Tchekhov, ou modernos, da Isabel Allende. Há contos enormes, mas que se leem numa só sentada, ou deitada. Que se lê o prefácio em Curitiba e o posfácio em Brasília, em que os personagens se conhecem em São Paulo e ao pousarem no Rio já foram felizes para sempre.
Como nos relacionamentos, há os rápidos e intensos, cujo prazer chega num pé e sai no outro, e há os lentos, duradouros, sólidos, que vão conquistando devagar, dia após dia, página após página. Assim é a relação com o romance, estrutura maior e mais complexa, recheada de contos, às vezes também crônicas, e muitas vezes poesia, ainda que em prosa.
É preciso ler grandes romances para entender do que estou falando. Grandes em qualidade e em tamanho. Aqueles bem grossos, assustadores aos coraçõezinhos desacostumados, os clássicos, aqueles que já passaram pelo crivo da História. Mas é como ir à academia depois das férias. Só dói no primeiro dia. 
Você precisa se envolver com os personagens, criar uma relação com eles, sentir saudade deles, sofrer junto, vibrar com suas conquistas, chorar suas dores, planejar suas vinganças, reprovar seus erros, reconhecer seus méritos, rezar para que se salvem. É preciso torcer pelo casal que quer ficar junto, pelo pai quer resgatar a filha, pelo detetive que persegue o autor do crime, pelo rei que defende seu reino, pela mãe que defende seu filho, pelo louco que se acha são. É preciso morrer as mortes dos personagens, e morrer de curiosidade pelo desfecho da história. Deve-se entrar nas páginas, molhar-se na tinta, respirar o ar que tomava o quarto do escritor, sentir sua pena riscando nossa pele. 
Tudo isso exige tempo. Exige que o livro durma ao nosso lado, em nossa mesinha de cabeceira, nos acompanhe na mochila ou na bolsa a todo lugar, nos faça companhia nas filas do banco e do supermercado, ande conosco no ônibus e no metrô, viaje conosco na ponte aérea ou no voo intercontinental, tome sol conosco na praia ou na piscina, vá conosco ao banco da praça ou do parque, ou simplesmente sente conosco no sofá da sala.
Na rapidinha do conto, na frieza da crônica e na beleza curta de um poema, viaja-se, mas é pegar um táxi, ou ir a pé ali na esquina. Ou é ir longe, mas num foguete à velocidade da luz. Não é melhor, nem pior. Mas é sexo rápido, na escada, no carro. Tira-se a roupa e já se sente o orgasmo. 
No amor leitor-romance, o sexo é tântrico, dura dias, semanas, meses ou anos. É namoro firme, relacionamento sério na rede social, anel dourado no anelar direito, e depois no esquerdo. Talvez o romance tenha esse nome porque nos conquista, nos enamoramos dele, e com ele casamos até que a morte nos separe...


sexta-feira, 26 de abril de 2013

Filhos e poemas


Amor e dor são ingredientes presentes nas receitas de filhos e poemas. Para facilitar, vamos escrever uma só. Faça um deles, ou faça os dois ao mesmo tempo, a seu critério.

Comece pelo amor. Será preciso aqui um trabalho a quatro mãos, ou dois corações. Como toda receita complexa, comum em pratos sofisticados, sem um ajudante, ou melhor, um co-autor, ou melhor, um amante, sujam-se panelas e acessórios e termina-se pedindo uma pizza pelo telefone.
Junte os dois amores num recipiente. Pode ser um parque, uma praia, um avião, um banco de praça, seu trabalho ou mesmo um site de relacionamentos. O importante é que um mestre-cuca enxergue o outro e mais ninguém, independente do tamanho da cozinha e da população em volta. Essa receita, um não faz sozinho, e mais de dois entorna o caldo.
Em seguida jogue as sementes. Podem ser de girassol, de alecrim ou de dó-ré-si-bemol. No caldo do amor, aquecido em fogo brando ou alto, dependendo da pressa e da fome, as sementes germinarão. Um corpinho começará a crescer. Versos e estrofes tomarão forma. Um olhinho aqui, uma palavra acolá. Uma rima emparelhada, outra cruzada. Orelhinhas emparelhadas, perninhas cruzadas. Não dá ainda para ver o sexo.
Mexa sem parar, para não desandar. Se parar não dá liga, vai solar. Também não pare de temperar. Se parar, vai azedar, ou salgar. A massa cresce, o corpo cresce, o amor em forma de ser, ou de poema, intumesce e aparece. Já dá para ver o sexo. Pode ser menino ou menina. Podem ser gêmeos no ventre ou mesmo na poesia. Tanto num como noutro, vale menino com menina, menino com menino ou menina com menina.
O feto e o rascunho viram gente e poema. Corpo completo, cabeça, tronco e membros, dísticos, quartetos e sextilhas. Já não cabe mais na panela, e nem no ventre, e nem na mente. E vem a dor. Prepare-se, este é o passo fundamental, o toque de mestre, o tempero final.
As contrações nas entranhas, no alto e no baixo ventre. Algo dentro de nós cresceu demais e tem de sair. A dor do parto, a dor que expulsa o filho do útero materno, a dor que jorra pela ponta dos dedos no sangue que transcreve o poema em letras escarlate. A poesia que toma forma, a semente que vira gente. Já não cabe em mim e nem em ti. É preciso dá-la à luz, levá-la à mesa, com choro e riso, velas e um bom vinho.
E olhamos aquela coisinha inacreditável que saiu de nós. É a cara do pai! Não, é a cara mãe! Tem traços dos dois! Cada linha, cada pausa, cada rima, cada acento, cada erro, cada acerto. Nos vemos ali. É nosso amor que tomou forma, de criança, de prosa ou de verso.
Sirva enquanto quente, beije, abrace, cheire, leia, releia, aproveite. Depois o filho cresce, o poema envelhece. Os traços mudam, as traças traçam. A tinta desbota. Mas sempre serão nossos filhos, nossa obra-prima, tanto a criança, para sempre criança, como o poema, para sempre poesia.
Amor e dor aparecem nas receitas de filhos e poemas. O amor inspira, concebe e gera. O amor cresce dentro de nós até não caber mais. A dor expulsa e pare. É um parto natural. Depois amamos aquele ser, aquele poema que se escreveu. E ele é a cara do pai e da mãe, digo, do amor do qual nasceu.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Eternidade efêmera

Ele acordou outro dia e olhou para o teto, a página em branco na qual costumava escrever seus mais repentinos pensamentos matinais. Percebeu que não queria mais o resto, só o certo.
Conhecera-a e reconhecera-a singular, diferente, única, também farta de começos e fins, e que buscava, enfim, o transcendental, aquilo que não nascia do físico e dele não herdava seus castelos de areia..
Aquele homem percebia que já se havia satisfeito em tudo. Sua vontade dali em diante, atendendo a sua própria e sincera convicção volitiva, encerrava-se na vida ao lado daquela e de mais nenhuma. Sua libido não mais respondia aos estímulos fugazes de traseiros rebolativos, pernas expostas, olhares vulgares ou esta ou outra artimanha feminina.
Seu único sexo longe da amada era o solitário e em sua homenagem, na lembrança de sua imagem, do cheiro, do decote generoso, da maciez da pele da parte interna das coxas, das mãos leves e carinhosas, dos lábios entreabertos num convite, do olhar hipnotizante e da Yoni perfeita..
Ao encontrá-la, reafirmava seu sentimento pela presença. Ao despedir-se, convencia-se pela ausência. Assim, o prazer do encontro e a dor da distância eram sentimentos opostos que em soma e subtração resultavam no convencimento do amor que nascia para uma vida eterna.
O medo de que seu sentimento fosse filho único, sem gêmeo no ventre de sua amada, assim como dois vulcões dificilmente entram em erupção ao mesmo tempo, exigia-lhe provas de amor todo dia, até na madrugada exausta..
Certa vez, teve a certeza de ter-se enganado quanto ao amor, ou acertado quanto ao seu medo, ao encontrar no diário de sua diva, dirigidas a outrem, as palavras que tanto sonhava em ouvir. Cartas que ela escreveu, mas não me escreveu.
Razão e sentimento imediatamente em postos na batalha, como crianças empunhando espadas de madeira. Não se golpeavam mutuamente, mas sim a sua cabeça, afastando-lhe o sono e o sossego.
Como Otelo, ressonavam-lhe na mente intrigas e suspeitas, não de traições, decerto, mas de que sua musa não era muda por si, mas abstinha-se de falar apenas a ele. Ela tinha em seu intimo os sonhos que ele lhe cobrava, mas neles ele nunca aparecia.
Inobstante a convicção de que o amor só é explicável por aquilo que não é descritível, associava a esse amor, no afã de justificá-lo, infinitos atributos, do caráter aos lindos olhos, do talento aos lábios solícitos, entreabertos, do espírito ao corpo.
Mas quando o amor se rende à razão, melhor seria acordar dessa eternidade efêmera. Coração não pensa e cabeça não sabe amar. Se pensa, não ama, se ama, não pensa. Se ama, não esquece, se ama, não acorda. Não sei brincar de nunca mais descontar no corpo o tesão que se sente pela alma.

sábado, 30 de março de 2013

Caixas

Descobri que caixas são seres vivos, reproduzem-se, geram-se espontaneamente, nascem e enchem-se. Abro uma, vejo uma nova, fechada e cheia. Em cada uma, histórias, dores, alegrias, amores, risos, rancores, coisas mortas, coisas esquecidas, coisas perdidas, surpresas boas e más, pessoas boas e más, pessoas que já se foram desta para melhor, ou para pior, pedaços e cacos de uma vida inteira.
As mudanças dão trabalho, mas nos lembram que temos o que não lembrávamos, que temos o que não precisamos. Ao limpar as caixas de seus conteúdos, limpa-se a própria alma, relê-se a própria história, renasce-se... assim como fazem as caixas.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Navegando contra o vento

Navegar contra o vento, ainda que com lenço e documento, é sempre mais difícil, vai-se lento, é cansativo varar as ondas de frente, ziguezagueia-se a bombordo e estibordo, camba-se para lá e para cá, vai-se mais para os lados que para frente e nunca se vencem grandes distâncias sem grande esforço. Foi assim que nunca aprendi a velejar.
Da mesma forma navegaram as ideias oposicionistas, subversivas, segundo alguns, ao longo da história. E não importa a cor do barco, ou das velas. Quando soprava o vento do liberalismo, ou capitalismo selvagem, para alguns, remavam de través os da esquerda. "Comunista!", gritavam para mim, ao volante do meu Passat repleto de adesivos de Lulalá. Estávamos em 1989. "Subversivo!", era meu adjetivo. Minhas velas eram vermelhas, com foice e martelo amarelos. Eu sonhava com um Brasil igualitário. Proletários no poder, eu pensava, seria a solução para todas as doenças tupiniquins. Não era de malária que eu falava, era de patrimonialismo, nepotismo, coronelismo, injustiça, desigualdade social. 
E o vento mudou, após tempestades incríveis, alucinantes. E após uma década, esse novo vento, contrário ao anterior, sopra forte. As velas da esquerda içadas, imponentes, firmes, infladas como balões. Mas minha viagem não se tornou mais fácil, pois as velas do meu barco não são mais vermelhas, e nem tampouco azuis e amarelas, são cinzas. Cinzas de dúvida. Talvez levado pelo desafio de sempre remar contra o vento, desafio as novas ondas, agora ao contrário, e novamente de frente. "Liberal!", gritam, "Reacionário!", me acusam, "Retrógrado!", me julgam. Outra vez sou minoria, sou oposição. E a oposição é sempre "errada", é sempre "do contra", é sempre "nociva". Ou seria, melhor dizendo, a situação sempre "certa", e sempre intolerante com os contrários, com os rebeldes, como os liberais capitalistas no poder eram com os comunistas trabalhistas do século XX, e como os assistencialistas trabalhistas são com os liberais capitalistas do século XXI.
Não sou radical como meu xará de sobrenome Bastiat, autor de La Loi, de 1850, publicado dois anos após o Manifest der Kommunistischen Partei, de Marx e outro xará meu, por coincidência, de sobrenome Engels. Bastiat, aquele sim era louco, lunático, viajandão, utópico da extrema direita, defensor do estado menos que mínimo, mas não menos lunático que o ideal de igualdade pregado pelo comunismo, baseado na utopia Rousseauniana da bondade natural. Sou apenas de centro-direita, defendo um Estado forte, porém sensato, que não dê o peixe, mas ensine a pescar, e não deixe de regular os abusos do poder econômico, e promova a reforma agrária (aquela que, incrivelmente, nossa esquerda esqueceu assim que subiu ao poder, como também não se lembra de diminuir uma das maiores cargas horárias trabalhistas semanais do mundo, apesar de se dizer "trabalhista").
Sem puxar a sardinha nem para a brasa da direita e nem da sinistra, digo, da esquerda, pois como já falei, minha bandeira hoje é cinza, o que me intriga é a enorme semelhança entre todas as bandeiras que tremulam sobre o solo brasileiro. Falar do fim das ideologias, da coligação entre siglas sem sentido, que mudam, as siglas e as coligações, a cada eleição, e são diferentes dependendo de outra sigla, a do estado da federação, é chover no molhado. Falo, então, apenas de uma semelhança específica, nociva, destruidora, cruel e antidemocrática: a intolerância.
O ser humano, seja de que banda ele venha, não é igual. Fulano é A, Sicrano é B, Beltrano é C. O ser humano também não é bom, não é solidário (talvez seja no Japão... talvez lá haja uma outra espécie humana, capaz de recolher dinheiro dos outros entre escombros de um terremoto e devolvê-lo ao dono), e, sobretudo, não respeita a opinião alheia. Parece que pertencer a uma maioria, fazer parte da "unanimidade", do "senso comum", tem por efeito colateral tornar-se intolerante. Assim são os heterossexuais em relação aos homo, são os religiosos em relação aos ateus, são os assistencialistas em relação aos liberais capitalistas,  bem como eram os capitalistas em relação aos comunistas.
A democracia não se garante apenas através do sufrágio universal. Este apenas garante que o Estado seja administrado pelo escolhido da maioria. O processo democrático vai muito além, alcança e abrange a liberdade de expressão e, acima de tudo, o respeito à expressão e à opinião alheia, ainda que minoritária.
Assim, quem quer que leia esse humilde desabafo que exteriorizo aqui, faça-me o favor de, em discordando, respeitá-lo. Sou ateu, sou capitalista, acredito na livre iniciativa, não torço pela Seleção Brasileira de Futebol, não curto carnaval, axé e nem música sertaneja, e sou contra o assistencialismo, entre outras coisas. E, acima de tudo, respeito opiniões diferentes das minhas!
Quem estiver navegando de vento em popa, meu parabéns! Navego eu de través, às cambadas, mas navego para onde quero ir, não para onde o vento pretende de me levar.

domingo, 20 de janeiro de 2013

O povo é uma criança

Quem de nós já não preferiu um doce ao almoço, um brinquedo a um livro, a brincadeira ao estudo?
Alguns de nós preferiam e não preferem mais, ou, quem sabe, preferem, mas optam pelo benefício do correto em detrimento do gostoso. Outros preferem e se entregam aos desejos, e continuam nos doces, brinquedos e brincadeiras. É como a piada na TV. Uns já não riem, apenas bocejam. Outros ainda rolam no chão às gargalhadas.
Crianças grandes, de barba, grisalhos ou sem cabelos, dirigem seus brinquedos pelas ruas como se estivessem jogando "Need for Speed" ou "GTA". Diferente da tela do videogame, aqui não há restart. Game over é game over, forever. Crianças grandes, de cílios postiços, silicone nos peitos e cicatrizes de cesária, almoçam brigadeiros e correm para a mesa do cirurgião para aspirar fora as gorduras localizadas. Algumas vão de lá direto para o céu, desfilar magrinhas, magrinhas, nos portões guardados por São Pedro.
Crianças grandes, barbudas ou siliconadas, matam o estudo e o trabalho para estender a brincadeira do carnaval até a segunda-feira seguinte. "Demitido? F...-se!".
Tal qual a criança pequena para quem pais amados são os que dão doces, brinquedos e não cobram responsabilidades, é a criança grande que ama o governante que dá dinheiro no lugar de saúde, educação e cultura. Não quero mais e melhores hospitais, não quero mais e melhores (e mais responsáveis) médicos, não quero mais e melhores escolas e professores, não quero mais e melhores defensores públicos, não quero um transporte público de qualidade, não quero uma cidade limpa, não quero um futuro melhor, ou, melhor dizendo, quero um futuro fantástico, repleto de celulares (um para cada um dos sete filhos) de última geração, com acesso ao Facebook, senão não vale, TVs de LED 3D maiores que a do vizinho, carrões financiados em trocentas parcelas, óculos de sol e bolsas de grife, ainda que falsificadas. 
Quero luxo, ainda que com o lixo acumulando à minha porta porque o prefeito sainte perdeu a eleição para o prefeito entrante.
Celulares, TVs, carros, disfarces para a pobreza, de bolso e de espírito. Pena que não sobrou para um plano de saúde, nem para a escola particular, muito menos para os livros, o teatro ou o cinema. Saúde preventiva? Tá de gozação? Não consigo nem não morrer no chão do corredor da emergência! E para que escola particular, se a pública não reprova mais? E com as cotas, então, diploma garantido de doutor. Tô me lixando se permanecerei um analfabeto funcional. Serei demitido é por estender o carnaval, não por minha educação rasa. Teatro? "Vá, mas não me chame", como diz aquela camiseta que comprei quando fui a Porto Seguro gandaiar. Quer saber? Prefiro um boteco, e sem blitz na saída.
Melhor como está. Me dá a mesada assistencialista aqui, em cash, para eu gastar com doce em vez de almoço, com brinquedo em vez de livro, com plástica em vez de saúde, com cachaça em vez de cultura, para eu poder festar!
E nossos pais políticos sabem muito bem disso. Para estampar no rosto da criança um belo sorriso, dê o que ela pede, não o que ela precisa. Assim, fica garantido, em retribuição, o amor, digo, o voto.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Conectividade



Não foram poucas as vezes em que ouvimos "um dia as crianças receberão um chip implantado logo após o nascimento". A frase recebeu inúmeras versões, mas a ideia é a seguinte: no futuro, todos nós seremos rastreados desde o nascimento, assim como um bezerro que recebe uma etiqueta na orelha, ou uma gaivota um bracelete numerado no magro tornozelo.
Ótimo! Nada mais de carteiras de identidade, cartões de crédito, crachás funcionais, carteirinhas do clube, da academia, nada! Para saber quem sou eu, bastará eu me aproximar de uma máquina leitora-identificadora de gente. Eu disse "aproximar". Nenhum contágio de gripe aviária do século XXII virá daí.
Não chegamos lá ainda, mas já demos o primeiro passo: o telefone celular.
Benção quando nasceu, praga da modernidade agora que todo mundo tem, e todo mundo espera que todo mundo tenha, e que esteja ligado durante as 24 horas dos sete dias da semana. Sem exceção nem mesmo para o sábado dos adventistas e dos judeus ou de quem mais tenha tido outrora um dia santo semanal.
Nascemos e já ganhamos, não um telefone, mas um smartphone com acesso a todo tipo de rede social, e-mail, blog, twitter etc etc etc. E ai de você se não responder imediatamente à chamada da esposa ou o e-mail do patrão. Espere grandes decepções e retaliações caso não comente ou ao menos curta aquele post do amigo no prazo máximo meia-hora após sua publicação. Não aceitar o pedido de amizade no Facebook? Inimizade para o resto da vida.
A conectividade deixou de ser um privilégio para se tornar uma obrigação. Absurdo não pertencer a uma rede social, absurdo maior ainda não ter uma conta de e-mail, absurdo inadmissível não ter um celular.
Feliz foi meu pai, que morreu sem ter um telefone no bolso. Se não queria ser perturbado, saía para caminhar nas areias de Guarapari, sozinho, sem os parentes, os amigos ou os inimigos na bermuda. Quando se cansava, voltava, e, sem identificador de chamadas, ninguém lhe cobrava um retorno quando resolvia tirar o fone do gancho (aquele de casa, com fio e disco de discagem). Garantida, então, a tranquilidade do silêncio telefônico.
A Apple, com sua extraordinária capacidade de antever o que queremos e o que não queremos (ou o que uns querem e outros não querem), foi diversas vezes processada nos EUA (a terra do judiciário) pelos lares destruídos pelo genial serviço de localização de iphones perdidos. A ideia é você achar seu aparelho extraviado ou furtado. Claro, virou mecanismo de espionagem. Filhos e cônjuges desavisados foram devidamente rastreados, localizados e punidos, uns com puxões de orelha, outros com a perda do patrimônio e da guarda das crianças. E tome processo!
Smartphones à prova d´água já estão por aí. Nada de desculpa do tipo "eu estava tomando banho! eu estava no banheiro! eu estava nadando!". Infeliz de quem retrucar com desculpas esfarrapadas como essas a reclamação por não ter atendido o telefone ao primeiro toque. E não adianta também pôr a culpa na operadora. Coincidência inaceitável essa da operadora ter "dado" problema bem na hora que te ligaram.
Que bom! Que legal! Que benção a conectividade! Não para mim! Não implantaram na minha cabeça um chip quando nasci. E não irei eu mesmo implantar um chip no bolso e permitir que a humanidade inteira espere e me cobre que eu permaneça conectado full-time. Tenha dó!
Por falar nisso, perderão minha amizade, estima e consideração aqueles que não postarem um comentário a esse texto no meu blog em no máximo, digamos, 15 minutos!

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Levando lebre por gato

No jornal Metro desta segunda-feira, 07/01/13, edição de Curitiba, na entrevista com Antônio Cícero, autor do livro "Poesia e filosofia", uma frase em destaque: "POESIA NÃO VENDE".
Na condição de leitor atento ao mercado editorial, permito-me ampliar o alcance dessa constatação: "LITERATURA DE QUALIDADE NÃO VENDE".
Ora, editoras são empresas com quaisquer outras, visam o lucro. Não são instituições de caridade que tenham por objetivo dar sustento a autores que gostariam de vender milhões de exemplares de sua última "obra-prima". E assim é, não apenas na literatura, mas também no cinema, na TV, na música. O popular e o bom não são sinônimos... ou são? O que é uma boa literatura? O que é um bom filme? Ou uma boa música? Seria arrogância dos críticos classificar um livro que vende milhões como algo ruim por não apresentar um estilo narrativo sofisticado? Algo que vende milhões, agrada milhões. Qualidade seria, por outro lado, agradar um número grande de consumidores? E se desagrada a "elite intelectual", os críticos, deixa de ser bom, apesar de popular? Não ouso entrar nessa discussão, que considero meramente conceitual. Afinal, trata-se, no fundo, de se chegar a um acordo sobre qual o conceito de "bom", qual o conceito de "qualidade".
Mas digamos que, por ser arte, a literatura tenha sua qualidade vinculada à estética, ou seja, o bom é o belo. Novamente caimos num problema. A estética é cultural, é ensinada ao indivíduo e não é intrínseca ao objeto da análise. A moda é o exemplo mais fácil a ilustrar isso. O que foi belo um dia, soa ridículo hoje. Eu não teria coragem de sair na rua, em 2013, com um paletó com ombreiras, bigode estilo Chaplin ou costeletas estilo D. Pedro I. Mas tudo isso teve o seu tempo. Tiremos as roupas para outro exemplo de estética temporal. As musas da década de 50 tinham carnes e curvas voluptuosas que hoje são taxadas de gordura localizada a ser extirpada na faca, para desespero das gostosonas e delírio dos cirurgiões plásticos.
Expostos os motivos pelos quais não quero questionar aqui o que é belo ou de qualidade, para que possamos prosseguir, vamos utilizar o seguinte conceito: tem qualidade aquilo que é reconhecido como bom pelos críticos literários.
Quase todos os maiores bestsellers da história são considerados ruins pela crítica, apesar de venderem "horrores". Ao mesmo tempo, obras reconhecidas como geniais vendem pouco. Nesse último caso, misturam-se grandes clássicos da literatura e livros excelentes de autores modernos. A explicação para isso é quase óbvia. A boa literatura é, muitas vezes, densa, pesada, complexa, longa, se esparrama por mais de quinhentas páginas e leva meses para ser lida de forma atenta e dedicada. Há outros casos em que a boa literatura é curta, aparentemente fácil, mas que passa ao leitor menos experiente uma falsa sensação de superficialidade e a obra acaba incompreendida. Deparei-me com dois exemplos recentes: Cândido, de Voltaire, e Satiricon, de Petrônio.
Eu sou leitor, logo tudo isso não me atinge. No máximo me fornece subsídio para elocubrações como esta aqui. Mas e o pobre bom escritor que se frusta a cada retorno negativo da leitura de seus originais pelas editoras? As grandes só publicam o que pode virar bestseller. As pequenas, "independentes", criteriosas, ao ver um bom texto, publicam-no, mas essas não conseguem uma ampla distribuição. Seus livros ocupam as estantes invisíveis das pequenas e moribundas livrarias de bairro, tal qual aquela da Meg Ryan em "Mensagem para você". Por fim, ainda que, por algum acidente, um leitor desavisado chegue a folhear aquela obra fantástica da qual estamos falando, ao ler algumas linhas e não entender a profundidade do conteúdo, devolve o incompreensível à prateleira e pega, por indicação de um amigo, ou da mídia, o bestseller em destaque numa pilha exclusiva no meio da loja. 
Nosso escritor, assim, não é publicado... ou, se é publicado, não é distribuído... ou, se é distribuído, não é vendido... em todo caso, não é lido.
Uma escritora amiga, ao ler "Se um viajante numa noite de inverno", de Ítalo Calvino (resenhado neste blog), teve a seguinte idéia. Que tal acrescentar ao original de seu bom livro (aquele com qualidade, ou seja, impopular por natureza) uns capítulos no início tratando de autoajuda, pornô para mamães, esoterismo, fórmulas para ficar rico ou outro assunto igualmente popular? Os editores, entulhados de originais a eles enviados diariamente, ao ler o início e ver que se trata de algo vendável, aceitarão o livro sem chegar ao início propriamente dito (aquele do livro de verdade, que só começa lá pela página 50)  e o mandarão imediatamente à prensa. Que tal incluir algo do gênero também ao final, caso o editor resolva folhear de trás para frente? Pronto! O livro disfarçado de bestseller em potencial iria, finalmente, ocupar os melhores lugares das melhores livrarias dos melhores shoppings e aeroportos, fazendo a fortuna da minha amiga escritora. Nesse caso, podemos até dizer que os leitores estariam, então, levando não gato por lebre, mas lebre por gato.


Joseph Conrad - O coração das trevas


Quem assistiu "Apocalipse Now", de 1979, e gostou do filme, não irá se arrepender de ler o livro do qual foi adaptado seu roteiro. 
O interessante é que a adaptação, nesse caso, ao contrário de outras versões cinematográficas de romances, transportou a história 70 anos à frente, da selva africana para a selva do Cambodja, do Kurtz agente de uma empresa exploradora de marfim para o Coronel Kurtz da guerra do Vietnam.
A história trata do resgate de Kurtz, que teria ficado louco após anos enfurnado na selva, convivendo com os nativos. Devido à mistura de elementos tão distintos, a aventura e a psicologia, o livro (e seu autor) foram considerados de difícil classificação por aqueles que o estudaram, a exemplo de Ítalo Calvino.
A clima de tensão ao longo da subida do rio rumo ao coração da selva não se atenua em nenhum instante e a psicodelia do encontro com Kurtz é marcante. 
Por outro lado, a narrativa de Conrad é simples, objetiva, sem rebuscos, ainda que feita numa técnica que impressiona. Talvez a origem jornalística do autor ajude a explicar isso. O fato é que quando se inicia sua leitura fica difícil largar o livro. 
Contudo, talvez Conrad tenha sido econômico e sucinto em demasia. A história, às vezes, passa a sensação de que deixa coisa demais a ser imaginada pelo leitor (e o leitor mais distraído pode, mesmo, não conseguir "entrar" na história). A narrativa se torna superficial em alguns pontos, como se fosse um roteiro de cinema ou teatro. Quem sabe, Conrad tenha, no seu íntimo, previsto que sua história seria melhor conhecida não na forma do seu livro, mas na forma do filme do Coppola.

Petrônio - Satiricon


Satiricon é um daqueles livros que está na minha estante desde quando eu era criança. E em todas as minhas idades eu o olhava de soslaio, com um olhar de ignorância maior que curiosidade, e, eu diria, até medo de abrir algo escrito no século I da nossa era. Que diabos haveria ali dentro? Em que linguagem aquilo estaria escrito?
Com a velhice (não do livro, mas a minha), após descobrir que coisas com 2 mil anos ou mais de idade podem ser surpreendentemente modernas e atuais, rompi a barreira dos séculos que me mantinham afastado dessa obra e ousei descerrar aquele sarcófago literário.
Assim como me ocorreu quando li Homero ou Voltaire, constatei que o ser humano de 3.000 AC, do século I e do século XVII é o mesmo. E em todas essas diferentes eras da humanidade surgiram escritores geniais. Petrônio, bem vindo à minha lista!
O livro narra as aventuras de 3 amigos (amigos íntimos, inclusive no sentido sexual da palavra) numa vila romana no século I. A questão da sexualidade é interessante. Já vi comentários a respeito de obras romanas dizendo que elas abordam a homossexualidade. Discordo. Entendo que o conceito de hetero ou homossexualidade sequer existia nessa época, pelo menos da forma como os temos hoje. Sexo era sexo e pronto! Não estava mais associado à procriação que à diversão, e, portanto, pouco importava se era feito entre iguais ou não. Mas, para utilizar os conceitos modernos, digamos que todos os personagens, e, parece-me, toda a população de Roma, são bissexuais ou pansexuais ou que termo se queira dar para aqueles que encaram o que lhes convêm, sem ligar para detalhes de gênero.
Mas a sexualidade não é o tema do livro, mas apenas um dos elementos, o que me leva a desculpar-me por um parênteses tão longo a esse respeito, necessário, todavia, para se afastar qualquer interpretação equivocada que de que o livro teria como um de seus motes a sexualidade em si.
Voltando à história, nossos três protagonistas se metem em confusões sucessivas, a la "Cândido" (de Voltaire), de forma hilária. Fogem da morte o tempo todo. Participam de banquetes e orgias, têm amantes em comum (de ambos os sexos), sofrem de ciúmes, passam fome, levam porrada, e apresentam a malícia e o jogo de cintura que acompanham o ser humano desde priscas eras.
Destaque para o banquete de Trimalchão, um rico sem berço, ex-escravo liberto que herda uma fortuna de seu ex-dono falecido. Um verdadeiro churrasco na laje de uma mansão na favela. Em vez da cerveja e da pinga, claro, o vinho, mas de resto é uma sátira totalmente atual do "novo rico".
Leitura rápida e prazeirosa, com diversão garantida.

Erasmo - Elogio da loucura

Tivesse a expressão "de médico e louco, todo mundo tem um pouco" uma origem literária, esta seria o "Elogio da loucura", de Erasmo de Roterdã.
Incrível ler esses livros escritos há tanto tempo (esse, precisamente, em 1501), e perceber que o ser humano do século XV é o mesmo do século XXI. Apenas o mundo muda, ou, diria, o aspecto material do mundo muda, mas o espírito do homem é imutável. O homem que andava a cavalo, depois a vapor, depois a combustão, depois a jato, era, é e será movido sempre pelas paixões, ou, nos termos empregados por Erasmo, pela loucura. E dela ninguém escapa, do servo ao papa.
E que bom! Nessa sátira ao racionalismo e à filosofia (e, não esqueçamos, ainda não estávamos no Iluminismo), o pensador holandês lança um olhar irônico e impiedoso aos que se julgam sãos. Filósofos, teólogos, a nobreza, o clero, ninguém escapa. Quase todos são loucos, como bem demonstrado pelo autor. E os poucos que não são, sofrem por não serem. 
Só os loucos são felizes. Felizes as crianças, por não terem ainda a idade da razão. Felizes os idosos, por já a terem perdido. Felizes os que, loucos, não pensam nas misérias humanas e com elas não se angustiam. Felizes os velhos que torram sua fortuna com mulheres 40 anos mais jovens, felizes as velhas que acolhem jovens 40 anos mais moços (como diz o ditado, melhor comer filé-mignon com os amigos que carne de pescoço sozinho). Felizes os bobos engraçados, cercados de amigos e risos. Tristes os intelectuais chatérrimos e solitários. Felizes os que não sabem que são infelizes.
A ignorância como anestesia das desgraças, em contraponto à dor que a luz da razão nos traz, é um tema até "batido", mas poucos o abordaram com tanta inteligência, humor e, por que não, loucura.

Ítalo Calvino - Se um viajante numa noite de inverno


Há livros que contam boas histórias. Há livros que discorrem sobre livros e literatura. Há ensaios sobre a experiência de ler. Se pusermos tudo junto num liquidificador, temos "Se um viajante numa noite de inverno".
Ítalo Calvino não é conhecido apenas pelos romances e contos, mas também por seus ensaios sobre a literatura. Nesse livro singular, resolve juntar as três coisas na história de um leitor e uma leitora e suas experiências com a leitura. A mistura, no entanto, está mais para emulsão de óleo e água. É possível destacar, um do outro, dois livros que se entrelaçam. 
Há um romance, propriamente dito, que narra a experiência dos dois leitores, angustiados em deparar com romances que não passam do primeiro capítulo, seja porque o restante se extraviou, seja porque houve uma falha de encadernação, seja porque se tratava de um original que se misturou a outros. A sucessão de inícios sem fim, não tem fim (com o perdão do trocadilho).
Em paralelo, digo, entrecruzando-se nesse romance, há os inícios de romances lidos pelos nossos protagonistas. Esse segundo elemento foi o que efetivamente gostei no livro. Calvino demonstra aqui sua habilidade (que me lembrou Kubrick) em escrever histórias de estilos os mais diversos: romances psicológicos, de espionagem, eróticos, políticos etc. Pode-se mesmo afirmar que "Se um viajante numa noite de inverno" contém dez pequenos contos de alta qualidade. Difícil dizer se as abruptas interrupções de cada um desses dez inícios de romances deveriam ter continuidade, ou se a interrupção é apenas uma forma de final, brusco, que transporta o leitor para suas próprias conclusões.
É um livro peculiar, um romance, uma coletânea de contos e um ensaio sobre a literatura e o mercado editorial, tudo sob uma única capa.

Bukowski - Ao sul de lugar nenhum


Relatar a experiência de ler Charles Bukowski é expôr-se a um grande risco. Bukowski, o poeta do subterrâneo, dos becos, dos porões fétidos, das garrafas de uísque esvaziadas solitariamente ou na companhia de outros seres igualmente "perdidos", pertence àquela espécie dos autores que, ao lado de Jack Kerouac e Henry Miller, são amados e idolatrados por uns, e odiados e desprezados por outros.
Não é todo mundo que se diverte, se encanta ou reconhece a genialidade do seu humor ácido, da descrição fisiológica de nossas necessidades fisiológicas, do trato livre, direto e indisfarçado do álcool, do sexo, da violência, mas, por que não dizer, parafraseando um outro autor do subterrâneo mais próximo, Nelson Rodrigues, da vida "como ela é".
Bukowski destaca-se, todavia, desse grupo seleto de contistas da realidade nua e crua, pelo senso de humor primoroso, não encontrado em seus companheiros de máquina de escrever.
A sátira à sociedade, ao americano "sonhador do sonho americano", à hipocrisia e aos valores pseudo-morais comuns, é colocada de forma brilhante, mas, alerto, indigesta aos estômagos mais sensíveis. 
Talvez ninguém se atreva a descobrir o quanto de suas histórias são relatos verídicos e autobiográficos, vividos ou sonhados pelo autor em suas viagens etílicas. A única certeza é a de que sua vida não deixou de ser pródiga em experiências pessoais necessárias à clareza e precisão com que Bukowski conseguiu retratar, em suas obras, a vida marginal.
Nessa coletânea de contos, ri-se da desgraça, mas, também, mostra-se que a desgraça não é pior que o vazio da vida regrada. Como alertei há pouco, é um livro para ser amado ou odiado, mas, sem dúvida, um livro para ser lido.

Charles Dickens - Grandes esperanças


Esperanças são apenas isso: esperanças. Essa talvez seja a lição, a mensagem que o Charles Dickens tentou, e conseguiu, nos passar ao escrever esse livro cerca de 10 anos antes de sua morte.

Produto da fase mais madura desse grande autor britânico, mais conhecido por seus romances "Oliver Twist" e "David Copperfield", o livro nos traz a vida de Pip, desde sua infância até a fase adulta, sob o ponto de vista do próprio garoto, que narra, em primeira pessoa, suas aventuras, suas paixões, seus medos, seus sofrimentos, seus sonhos e suas frustrações.
Sua história acaba sendo determinada a partir do marco direcional ocorrido ainda na infância, quando, ao ajudar um preso fugitivo, conquista ali o coração do homem que o ajudará depois, anonimamente, dando-lhe, ainda que apenas temporariamente, "grandes esperanças", traduzidas pelo patrocínio de uma possível vida de cavalheiro em Londres.
O sonho, todavia, não chega a ir além das esperanças. A fuga da pobreza da infância daquele garoto órfão criado pela irmã tirana e pelo cunhado bondoso e carinhoso, é povoada por personagens que representam por si mesmos a maldade e a bondade, o justo e o injusto, deixando claro o viés moral da história. Pip representa o ser humano que oscila entre o bem e o mal, a gratidão e a ingratidão, ou seja, o humano mais humano, com seus erros, desvios e angústias.
Além do fugitivo degredado, benfeitor de Pip, Dickens traz à narrativa a Srta. Havisham, uma idosa que, abandonada pelo noivo no dia de seu casamento, enclausura-se para sempre em seu quarto, cercado pelos restos rotos de seu vestido de noiva e pelos restos podres de seu bolo de casamento. Em seu plano de vingança contra a vida e os homens, adota e molda uma garota belíssima, dando-lhe um coração frio e inescrupuloso. Sua cria terá como objetivo vingar a criadora contra o gênero masculino. Pip, nosso protagonista, passa a ser sua vítima: o garoto a ser seduzido, iludido e abandonado por sua amada, Estela, a filha adotiva da Srta. Havisham. 
Mas, nesse livro, nada termina como se imagina ao longo de sua leitura. A expectativa do leitor, frustrada a cada prognóstico que não se concretiza, a cada amor que não se firma, a cada plano que não chega ao final planejado, nos transporta defitivamente para dentro dos sentimentos dos personagens. Experimentamos, assim, o que os próprios personagens experimentam e constatam nas suas vidas e futuros imprevisíveis: que esperanças não passam de esperanças.

Homero - Odisséia


Não me caberia aqui falar de Homero e nem da Odisséia. Um os livros mais lidos, comentados, discutidos e  estudados da história não precisa e não merece a produção de mais uma resenha por um reles leitor qualquer.
Limito-me portanto, a dizer o que eu senti ao ler esse livro, explicar por que resolvi o ler e o que mudou em mim após sua leitura.
Já há algum tempo na minha estante, a Odisseia lançava-me seus olhos milenares a cada vez que eu passava em frente à estante na qual dormiam Ulisses, Telêmaco, Penélope, cíclopes e outras figuras. Mas não foi esse olhar sedutor que me venceu. Foi ao ler "Os sofrientos do jovem Werther", de Goethe, e ver ali a paixão do protagonista por Homero, o qual ele carregava debaixo do braço para onde quer que fosse, que me interessei em espiar por cima do ombro de Werther para ver o que tanto o encantava.
Tomei coragem. Como seria minha primeira leitura de um clássico grego, senti um certo medo do que haveria à frente; senti-me diante das brumas sobre o lago navegado por Caronte. Mas logo às primeiras páginas, a névoa de dissipou, descortinando uma narrativa leve, divertida e fácil. A perfeição do roteiro, resultado de três mil anos de lapidação, fez dessa jóia uma das mais bem acabadas do baú de tesouros da literatura. Impossível não se deixar seduzir pela história e pela forma com que essa história foi registrada, uma prosa poética maravilhosa. 
Depois dessa experiência, abre-se um apetite voraz por tudo que é grego ou romano. Parti então para mil anos adiante, para o século I de nossa era, para ler Petrônio, mais precisamente Satiricon, o qual também me olhava enamorado da mesma estante, e que, é claro, também faz referência a Homero e à Odisséia. Mas isso é uma outra história...