sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O vazio do tempo vazio

O vazio do tempo vazio.
Tudo congela.
Não, tudo anda.
Nós é que congelamos.
Tudo anda sem nós.
Tudo anda mais rápido,
e nós congelados.
Assisto a tudo da janela.
Meu corpo inerte,
uma múmia.
O tempo passando sem mim.
Um pedaço da vida indo a cada minuto,
um pedaço da morte se antecipando a cada instante
que é passado sem mim.
A vida que descola do tempo.
O tempo que passa ao largo da minha vida.
O tempo que assisto da janela,
que só corre por fora dela.
Aqui dentro tudo parado,
apenas eu, inerte, morto, estático.
E a vida lá fora prossegue.
Os tempos lá fora preenchidos.
Aqui dentro o tempo cheio apenas de um grande vazio.
Melhor dormir
e não ver o tempo passar lá fora sem mim,
e nem eu passar o tempo aqui dentro sem ti.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Flaubert, Bovary e o trânsito.






Embalado pelo som dos Beatles, recheado de exaustivas ocorrências da palavra “LOVE”, entrei, como proteção contra o tédio e o stress do congestionamento diário no caminho do trabalho para casa, num exercício de imaginação. Lembrei de livros que li, tantos deles retrataram de maneira incansável as venturas e desventuras do amor, enquanto meus olhos assistiam, no mundo real, a uma fila infindável de carros, ônibus e caminhões, e meus ouvidos se esforçavam para ouvir as ocorrências de “LOVE” em meio às buzinadas e roncos de motores ao meu redor.
Veio à mente que a literatura clássica, romântica, ocupou-se tanto das questões do coração, pois teriam sido elas, talvez, as responsáveis pelas angústias de uma humanidade bucólica, que trabalhava em casa, ou não trabalhava, pois o amor era vivido por personagens da nobreza ou da alta burguesia. Se trabalhava, ia a pé, a cavalo ou em charretes, e não deixava e buscava os filhos na escola. Fosse Flaubert nosso contemporâneo, não teria escrito a tragédia de uma Madame Bovary atormentada pelas paixões amorosas, mas talvez pelos engarrafamentos ao sair de casa transportando suas crianças, correndo para bater o ponto no trabalho, repetindo tudo ao meio dia e depois à noite. Isso porque o trânsito tornou-se, quem sabe, uma fonte de angústias e desprazeres maior que qualquer coração ferido, amor não correspondido, paixão impossível ou algo do gênero.
Pode-se mesmo perceber semelhanças entre o trânsito de agora e o amor de outrora.
A indecisão, por exemplo. Aquele carro na sua frente, que não sabe se vai para a esquerda ou a direita, se pára ou se anda, não nos irrita tanto quanto o amante que não sabe se vai ou se fica, se quer ou se não quer?
E quando essa indecisão leva alguém a manter seu carro sobre duas faixas, como se não houvesse mais ninguém para trafegar naquela rua? Não seria tão irritante quanto aquele que ocupa dois corações alheios, sem saber direito por qual optar, e, atrapalhando o tráfego das paixões, impede que outros corações avancem livremente?
E os roncos dos motores, mormente das motocicletas, e as buzinas histéricas, não nos levam á loucura, tal qual levaria a histeria de um amante indignado?
Até o tempo relativa-se no trânsito como relativava-se na paixão romântica. Cada minuto longe da pessoa amada durava uma hora, cada dia uma semana, cada mês uma vida. Hoje, o tempo se estica a cada sinal fechado. Segundos passam em câmera lenta e, quando o verde abre, o tempo acelera mais do que os carros à nossa frente e vemos, incrédulos, o vermelho fechar a porta à nossa cara.
Aproveito a parada e o tempo que volta a se retardar, para voltar meus ouvidos novamente ao som do carro. Fujo junto com os Beatles para outro lugar, cheio de “LOVE”s. De certo, Flaubert, na sua época, ou Madame Bovary, que, segundo ele, era ele mesmo, puxaria da gaveta um livro e fugiria com seus personagens para bem longe do trânsito, digo, de suas tormentas, fossem elas quais fossem.