terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Minha árvore de Natal


Na raiz, o Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, afinal é da língua que a árvore de livros puxará sua seiva.
Subindo pelo tronco, são todos livros que eu já li. Eu queria uma árvore que eu conhecesse por fora e por dentro.
O tronco começa com livros robustos, para dar firmeza. Ana Karenina, do Tolstoi, porque Natal lembra família e afinal, como Tolstoi nos ensina na primeira frase do livro, "todas as famílias felizes são iguais. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira."
Depois, a coletânea da Jane Austen, porque Natal lembra Ding-o-bell, que lembra a língua inglesa, que lembra sua maior escritora.
A  fugitiva, quinto volume de Em Busca do Tempo Perdido, do Marcel Proust, por ser o escritor mais elegante que conheço. Sua prosa impecável dá charme à árvore.
Cem Anos de Solidão, do Gabriel Garcia Marquez. Sem ele a árvore não seria tão fantástica.
O Grande Gatsby, do Francis Scott Fitzgerald, dando glamour a esse vegetal.
Odisséia,  de Homero, narrando a volta de Ulisses à sua árvore de Natal.
Ilusões Perdidas, do Honoré de Balzac, lembrando-nos que a vida não é feita só de natais.
O Lobo da Estepe, do Hermann Hesse, livro em cuja casca gravo meu nome.
Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Homenagem póstuma ao protagonista do livro.
Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, mostrando-nos o que será dos nossos natais um dia.
A Metamorfose, do Kafka, numa referência à própria transfiguração dos livros em galhos e folhas.
Recordações da Casa dos Mortos, do Dostoievski, porque Natal lembra neve, que lembra Sibéria, cenário desse livro.
Histórias de Cronópios e de Famas, do Julio Cortazar, porque só um cronópio como eu teria tido a idéia de vincular esse livro ao Natal.
Doutor Fausto, do Thomas Mann, porque é preciso um pouco de música para se fazer Natal.
Viva o Povo Brasileiro, do João Ubaldo Ribeiro. Afinal, a árvore é brasileira. Viva ela!
On The Road, do Jack Kerouac, porque acima de tudo essa árvore é uma grande viagem.
Por fim, no galho mais alto, o grande Charles Bukowski e seu Ao Sul de Lugar Nenhum trazendo à tona e ao posto mais alto os subterrâneos da vida.
E como em toda boa árvore, nela pousa um passarinho: um poema em forma de caixinha de presente da série "Escritos para uso pessoal e doméstico", da escritora goiana Cássia Fernandes.


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Cara-n-avos (ou os outros gominhos da laranja)

Umas me trataram como um deus, me idolatraram, me adoraram.
Outras me trataram como um bebê, me deram colo, me deram o seio, me deram comida, me deram calor.
Umas realizaram minhas fantasias, outras se assustaram.
Umas me pediram fantasias, outras se negaram.
Umas foram santas, outras foram livres.
Umas me deixaram,  outras me perseguiram.
Umas partiram, nem todas se despediram.
Umas me batiam, outras pediam, mas não apanhavam.
Umas me cuspiram, outras me babaram.
Umas me ajudaram, outras me sugaram.
Outras me trataram como mais um, me usaram, se satisfizeram.
Outras me trataram com amizade, me ouviram, me aconselharam, velaram por mim.
Outras me trataram como inimigo, me maltrataram, me prejudicaram, me roubaram.
Outras nem me trataram de forma alguma, apenas me viram e passaram.
Mas todas me tocaram, de todas gostei de alguma forma e muitas me magoaram de alguma maneira.
Nenhuma me foi absolutamente boa ou má, algumas foram mais ... outras foram menos ... mas todas foram.
Não tenho cara-metade. Tenho cara-n-avos.
E cada gominho sozinho não faz uma metade de laranja.


terça-feira, 8 de julho de 2014

Forças fundamentais

Há uma teoria na Física que diz haver apenas três forças fundamentais regendo o Universo: a gravitacional, a forte e a eletrofraca.
Há um grande amigo que diz haver apenas três forças fundamentais regendo o ser humano: o alarido das palmas, o tilintar das moedas e o gemido das mulheres.
Chego a conclusão, contudo, de que são outras as três forças fundamentais que explicam o comportamento humano: o amor, a solidão e o orgulho.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Alianças

Desde priscas eras (parafraseando um certo professor de Direito que admiro muito), o homem (e a mulher - dada a pressão recente para que ao masculino não seja permitido representar o ser humano linguisticamente) adota símbolos de compromisso, de posse em relação ao outro ou às coisas que possui (ou pensa que possui).
Tal qual marcas de ferro em couro de boi, coleiras de couro em pescoço de cachorro, capas distintivas em cadernos de escola ou etiquetas com nomes em malas de viagem, colocamos em quem nos interessa marcar nossos sinais de posse e propriedade.
Alianças e anéis de compromisso são as marcas de ferro mais tradicionais. Mas há quem queira algo que não escape do dedo e role ao primeiro bueiro. Tatuagens com o nome do amado-proprietário bem à mostra, no braço, no pescoço, ou, num requinte de crueldade, nas partes mais íntimas, para que sejam mostradas bem na hora H a parceiros subsequentes. Tatuagens que viram manchas escuras e disformes em vãs tentativas de correção ortográfica. "O que é isso?" "Uma tatuagem, meu bem!" "Mas o que significa?" "Uma nuvem negra de chuva, não está vendo?".
Enquanto válidas, são lindas. Expiradas, o nome do falecido no mármore da pele soa mais como um epitáfio.
Melhor usar marcas genéricas que sobrevivam às mudanças: "Sou sua", "Vem, meu bem!", "Paixão da minha vida" ou algo assim, sem endereço certo. Pode-se também, com algum (enorme) trabalho adicional, só se relacionar com pessoas de mesmo nome. Para tornar a façanha menos impossível, deve-se escolher um nome comum. Prefira Maria a Vaudelina, João a Ronicleiton. Dessa forma, pode-se reutilizar, reciclar, sendo politicamente correto, ecológico e evitando o desperdício de tinta de tatuagem, a marca do antigo dono. Cuidado apenas para não mostrar a etiqueta antiga na primeira noite. Deve-se ocultá-la até o dia em que seja conveniente dizer sem levantar suspeitas "Meu bem, olha a tatuagem que fiz para você! Não ficou linda?". Desnecessário dizer que a tatoo com o nome reciclável deve ser restaurada de tempos em tempos a fim de parecer sempre nova.
A tecnologia, todavia, tem facilitado esse doloroso processo de marca-desmarca. Não se marca mais a ferro no próprio couro, mas na pele cibernética das redes sociais. Um clique e surge uma nova etiqueta, uma nova aliança, um relacionamento "sério" com alguém, noticiado globalmente a familiares, amigos, inimigos e desconhecidos. Outro clique e tchau amor da minha vida! Novo status: solteiro(a)! Uhuuu! Na pista de novo e pegando geral, passando o rodo! Após uma noite inesquecível, novo clique e... e depois e depois e depois, sempre mais do mesmo. A internet em nuvem chovendo na forma dos amores líquefeitos de Zygmunt Bauman.
Vivemos na sociedade do anel virtual, a internet é a nova senhora dos anéis (não resisto a esse trocadilhos infames). Mas é no mundo real que brilha ainda o ouro da tradicional e inigualável aliança de casamento. Status algum do mundo cibernético conseguirá superar a força de tal símbolo. As bem casadas mal coitadas do José Avelino Dias levantando xícaras e mostrando "distraidamente" o dedinho reluzente em grosso dourado, mortas de orgulhosas. Porque o prazer não é só de quem marca, mas também de quem é marcado.
Seja na realidade de nossas mãos calejadas, seja na fumaça etérea de nossas páginas virtuais, fato é que nem sempre tudo é para sempre. E, se o laço acaba, que se parta a aliança e fiquem cá os dedos. Porque, afinal, ninguém é de ferro!

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Espólio

Quando morrem nossos avós, encontramos nas gavetas cartas de amor, fotografias, diários e outros vestígios da memória daqueles que se foram.
E quando NÓS morrermos? O que deixaremos em nossas gavetas? Temos gavetas?
Na era na computação em nuvem, nossa memória não vira matéria. Na mesinha de cabeceira virtual, tudo se perde junto com a senha de quem morre. Fotos, emails, posts, tudo é enterrado com seu dono, como jóias de faraós. Ao menos estas um dia são escavadas e expostas ao olhar a admiração de estranhos curiosos.
A gaveta virtual, porém, não deixa vestígios arqueológicos. Não há inscrições na parede da caverna. Não há chaves perdidas a serem encontradas. Não há albuns de fotografias amareladas a serem vasculhadas. Não há cartas de amor a serem violadas. Não há, por fim, histórias a serem reveladas.
A era da informação, do email, do post, é a era do efêmero, da morte sem vestígios, das lembranças "deletadas", das contas de email para sempre encerradas, do passado para sempre apagado.
O mundo virtual não deixa marcas. A eficiência da tecnologia, da redundância, do backup, da seguranca da informação, também é a eficiência do esquecimento, do apagamento, do encerramento.
Aperta-se um botão, clica-se num mouse, e milhares de cartas são rasgadas, milhares de fotos são incineradas sem deixar nem sinal de fumaça, num piscar de olhos.
Talvez nem isso. Talvez apenas um vírus, um HD que "deu pau", e plof! Adeus lembranças! 
A humanidade constrói na nuvem um futuro sem passado, uma morte sem rastros. 
Nossos netos não descobrirão lindas histórias de amor em gavetas trancadas e arrombadas. Não encontrarão fotos empoeiradas, nem guardanapos com beijos de baton, nem ingressos de cinema amarrotados, nem vestígios de perfume, nem flores secas em livros, e nem livros com dedicatórias.
Não quero que meu passado morra comigo. Tratarei de imortalizar minha história concretizando-a, materializando-a, dando-lhe corpo e forma, cor e cheiro. Imprimirei todas as minhas fotos, imprimirei todos os meus emails, posts, comentários, chats. Passarei tudo para o papel, papel que guardarei em gavetas, caixas de sapatos, armários com tamanho, cor e peso. E quero que tudo sobreviva à minha morte. Minhas filhas e netos não precisarão de senhas para ler-me, para ler meus amores, olhar o que vi e fotografei, sentir o que senti, cheirar o que cheirei, entender o que fui, perceber o que percebi, descobrir quem amei, lembrar quem eu fui.
Nessa vida o que passou, passou. Os amores acabados estão mesmo acabados. As histórias concluídas estão mesmo encerradas. Mas suas lembranças merecem ir além da nossa existência terrena. Devem transcender. Os romances podem e devem sobreviver para além de seus protagonistas.
Senão, nada faria sentido. Se um dia tudo acaba, que sentido teria um dia ter existido?


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Retrovisor



É como um farol de carro. 
É como uma tempestade no deserto.
Se olho a luz de frente, ela me cega.
Se encaro o vento, ele levanta a areia na altura dos meus olhos, ele me cega.
Se dou as costas à luz, vejo tudo.
Se dou as costas ao vento, abro meus olhos, e vejo.
Não via nada à frente. Virando-me, vejo tudo.
Só enxergo o que já ficou para trás, quando já não adianta mais.
Não sei enxergar fatos, enxergo apenas marcas no passado. 
Mas aí já está marcado,  já é passado, já sou eu atropelado.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Para não morrer no esquecimento




Outro dia assisti um filme que muito me impressionou: "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" (Eternal sunshine of the spotless mind, 2004). Trata-se da história de um casal que, terminada a relação, resolve apagar um ao outro da memória através de um tratamento médico especial. O processo consiste em localizar no cérebro as memórias a respeito da outra pessoa e destruir as respectivas conexões nervosas, e, assim, os laços afetivos, as lembranças, tudo, tornando o ser outrora amado num ilustre desconhecido.

Outro dia ocorreu um fato que também muito me impressionou: a morte prematura de um colega de trabalho num estúpido acidente de automóvel. Trata-se da morte de alguém de quem eu gostava, um amigo com quem convivia diariamente, alguém que de repente sumiu da face da terra, morreu.

O filme e o fato então conectaram-se na minha cabeça em alguma ligação nervosa. Nervosa nos dois sentidos. Desde então surgiu em mim um pensamento intrigante. Passei a ver uma relação íntima entre esquecimento e morte. 

Quando uma pessoa morre, nunca mais a vemos, nunca mais a ouvimos, nunca mais a tocamos. Quando apagamos uma pessoa da nossa memória, ou melhor, quando desejamos apagar uma pessoa da nossa memória, quando buscamos nunca mais vê-la, dela nunca mais ouvir falar, esquecer que um dia a tocamos, não seria o mesmo que matá-la? Um morto e um esquecido não teriam sobre nós o mesmo efeito: a ausência total e eterna a todos os nossos sentidos?

Esquecer alguém não é o mesmo que matar esse alguém?

Por que as pessoas querem matar aquelas que um dia amaram? Nunca recebi a notícia da morte de alguém que eu tenha amado no passado (falo aqui exclusivamente do amor romântico), mas tenho certeza de que não seria uma notícia nada prazerosa, muito pelo contrário, por mais que o amor em si estivesse morto e enterrado (com o perdão do trocadilho).

Melhor se fizéssemos como num outro filme, "O vingador do futuro", onde implantavam-se memórias de viagens, fazendo-se a pessoa acreditar que havia viajado para tal e tal lugar, por ter em sua mente lembranças claras e indistinguíveis daquelas produzidas por experiências sensoriais reais. Se eu lembro que fui, então eu fui.

Por que não apagamos, portanto, as lembranças ruins e mantemos as boas? Por que não lembrar dos beijos gostosos, do toque mágico, do olhar único, do sexo maravilhoso, do prazer da companhia, das afinidades, das conversas interessantes, dos motivos que fizeram nascer a paixão e o amor por aquela pessoa?

Cultivar as boas lembranças ou as ruins é uma opção nossa. E, como num cultivo agrícola, é preciso o tempo. O tempo: a grande máquina manipuladora da memória. O tempo nos faz, naturalmente, cultivar o que foi bom e matar o que foi ruim.

Depois de afastados de uma cidade na qual moramos há anos, tendemos a achar que o trânsito nem era tão ruim, que o lugar nem era tão violento, que o clima nem era tão insuportável.

Passada uma época, tendemos a achar que tudo antes era maravilhoso, "bons tempos aqueles ..." dito com um sorriso quase imperceptível e os olhos brilhando focados no infinito. A década anterior era melhor, o século que não vivi era certamente melhor, o que me remete a mais um filme, extraordinário: "Meia-noite em Paris".

Quando crianças, queríamos ser adultos. Hoje, lamentamos não poder voltar no tempo e voltar a ser criança. A infância, guardada na memória e embelezada pelo tempo, nos soa tão linda e perfeita!

Tudo isso não seria apenas uma bela peça pregada pelo tempo e pela nossa memória?

Voltando ao "Brilho eterno de uma mente sem lembranças", há uma cena em especial da qual gostaria de falar: o herói da história chega ao local de trabalho da ex-namorada. Esta já havia feito o tratamento que apagara por completo qualquer lembrança sobre nosso herói. Ela o olha, indiferente, e pergunta o que ele deseja, como se nunca o tivesse visto antes. Ele agora era um desconhecido. Nosso herói, por sua vez, olha atônito sua ex-amada, dá meia volta, e vai, ele mesmo, não restando outra saída, "curar-se" pelo mesmo tratamento.

O filme é de ficção, é claro. Não sei se um dia a medicina terá esse poder que nem o tempo tem de apagar por completo nossas lembranças, mas se um dia tiver, não o invocaria. Permitam-me estar em paz com meus amores passados, permitam-me lembrar das coisas boas que vivi, das pessoas que amei, permitam-me curtir minha própria história. Fui eu quem a construí, às vezes sozinho, às vezes acompanhado. E essas lembranças, eu as quero. Quero que me acompanhem... até a morte.