domingo, 20 de janeiro de 2013

O povo é uma criança

Quem de nós já não preferiu um doce ao almoço, um brinquedo a um livro, a brincadeira ao estudo?
Alguns de nós preferiam e não preferem mais, ou, quem sabe, preferem, mas optam pelo benefício do correto em detrimento do gostoso. Outros preferem e se entregam aos desejos, e continuam nos doces, brinquedos e brincadeiras. É como a piada na TV. Uns já não riem, apenas bocejam. Outros ainda rolam no chão às gargalhadas.
Crianças grandes, de barba, grisalhos ou sem cabelos, dirigem seus brinquedos pelas ruas como se estivessem jogando "Need for Speed" ou "GTA". Diferente da tela do videogame, aqui não há restart. Game over é game over, forever. Crianças grandes, de cílios postiços, silicone nos peitos e cicatrizes de cesária, almoçam brigadeiros e correm para a mesa do cirurgião para aspirar fora as gorduras localizadas. Algumas vão de lá direto para o céu, desfilar magrinhas, magrinhas, nos portões guardados por São Pedro.
Crianças grandes, barbudas ou siliconadas, matam o estudo e o trabalho para estender a brincadeira do carnaval até a segunda-feira seguinte. "Demitido? F...-se!".
Tal qual a criança pequena para quem pais amados são os que dão doces, brinquedos e não cobram responsabilidades, é a criança grande que ama o governante que dá dinheiro no lugar de saúde, educação e cultura. Não quero mais e melhores hospitais, não quero mais e melhores (e mais responsáveis) médicos, não quero mais e melhores escolas e professores, não quero mais e melhores defensores públicos, não quero um transporte público de qualidade, não quero uma cidade limpa, não quero um futuro melhor, ou, melhor dizendo, quero um futuro fantástico, repleto de celulares (um para cada um dos sete filhos) de última geração, com acesso ao Facebook, senão não vale, TVs de LED 3D maiores que a do vizinho, carrões financiados em trocentas parcelas, óculos de sol e bolsas de grife, ainda que falsificadas. 
Quero luxo, ainda que com o lixo acumulando à minha porta porque o prefeito sainte perdeu a eleição para o prefeito entrante.
Celulares, TVs, carros, disfarces para a pobreza, de bolso e de espírito. Pena que não sobrou para um plano de saúde, nem para a escola particular, muito menos para os livros, o teatro ou o cinema. Saúde preventiva? Tá de gozação? Não consigo nem não morrer no chão do corredor da emergência! E para que escola particular, se a pública não reprova mais? E com as cotas, então, diploma garantido de doutor. Tô me lixando se permanecerei um analfabeto funcional. Serei demitido é por estender o carnaval, não por minha educação rasa. Teatro? "Vá, mas não me chame", como diz aquela camiseta que comprei quando fui a Porto Seguro gandaiar. Quer saber? Prefiro um boteco, e sem blitz na saída.
Melhor como está. Me dá a mesada assistencialista aqui, em cash, para eu gastar com doce em vez de almoço, com brinquedo em vez de livro, com plástica em vez de saúde, com cachaça em vez de cultura, para eu poder festar!
E nossos pais políticos sabem muito bem disso. Para estampar no rosto da criança um belo sorriso, dê o que ela pede, não o que ela precisa. Assim, fica garantido, em retribuição, o amor, digo, o voto.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Conectividade



Não foram poucas as vezes em que ouvimos "um dia as crianças receberão um chip implantado logo após o nascimento". A frase recebeu inúmeras versões, mas a ideia é a seguinte: no futuro, todos nós seremos rastreados desde o nascimento, assim como um bezerro que recebe uma etiqueta na orelha, ou uma gaivota um bracelete numerado no magro tornozelo.
Ótimo! Nada mais de carteiras de identidade, cartões de crédito, crachás funcionais, carteirinhas do clube, da academia, nada! Para saber quem sou eu, bastará eu me aproximar de uma máquina leitora-identificadora de gente. Eu disse "aproximar". Nenhum contágio de gripe aviária do século XXII virá daí.
Não chegamos lá ainda, mas já demos o primeiro passo: o telefone celular.
Benção quando nasceu, praga da modernidade agora que todo mundo tem, e todo mundo espera que todo mundo tenha, e que esteja ligado durante as 24 horas dos sete dias da semana. Sem exceção nem mesmo para o sábado dos adventistas e dos judeus ou de quem mais tenha tido outrora um dia santo semanal.
Nascemos e já ganhamos, não um telefone, mas um smartphone com acesso a todo tipo de rede social, e-mail, blog, twitter etc etc etc. E ai de você se não responder imediatamente à chamada da esposa ou o e-mail do patrão. Espere grandes decepções e retaliações caso não comente ou ao menos curta aquele post do amigo no prazo máximo meia-hora após sua publicação. Não aceitar o pedido de amizade no Facebook? Inimizade para o resto da vida.
A conectividade deixou de ser um privilégio para se tornar uma obrigação. Absurdo não pertencer a uma rede social, absurdo maior ainda não ter uma conta de e-mail, absurdo inadmissível não ter um celular.
Feliz foi meu pai, que morreu sem ter um telefone no bolso. Se não queria ser perturbado, saía para caminhar nas areias de Guarapari, sozinho, sem os parentes, os amigos ou os inimigos na bermuda. Quando se cansava, voltava, e, sem identificador de chamadas, ninguém lhe cobrava um retorno quando resolvia tirar o fone do gancho (aquele de casa, com fio e disco de discagem). Garantida, então, a tranquilidade do silêncio telefônico.
A Apple, com sua extraordinária capacidade de antever o que queremos e o que não queremos (ou o que uns querem e outros não querem), foi diversas vezes processada nos EUA (a terra do judiciário) pelos lares destruídos pelo genial serviço de localização de iphones perdidos. A ideia é você achar seu aparelho extraviado ou furtado. Claro, virou mecanismo de espionagem. Filhos e cônjuges desavisados foram devidamente rastreados, localizados e punidos, uns com puxões de orelha, outros com a perda do patrimônio e da guarda das crianças. E tome processo!
Smartphones à prova d´água já estão por aí. Nada de desculpa do tipo "eu estava tomando banho! eu estava no banheiro! eu estava nadando!". Infeliz de quem retrucar com desculpas esfarrapadas como essas a reclamação por não ter atendido o telefone ao primeiro toque. E não adianta também pôr a culpa na operadora. Coincidência inaceitável essa da operadora ter "dado" problema bem na hora que te ligaram.
Que bom! Que legal! Que benção a conectividade! Não para mim! Não implantaram na minha cabeça um chip quando nasci. E não irei eu mesmo implantar um chip no bolso e permitir que a humanidade inteira espere e me cobre que eu permaneça conectado full-time. Tenha dó!
Por falar nisso, perderão minha amizade, estima e consideração aqueles que não postarem um comentário a esse texto no meu blog em no máximo, digamos, 15 minutos!

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Levando lebre por gato

No jornal Metro desta segunda-feira, 07/01/13, edição de Curitiba, na entrevista com Antônio Cícero, autor do livro "Poesia e filosofia", uma frase em destaque: "POESIA NÃO VENDE".
Na condição de leitor atento ao mercado editorial, permito-me ampliar o alcance dessa constatação: "LITERATURA DE QUALIDADE NÃO VENDE".
Ora, editoras são empresas com quaisquer outras, visam o lucro. Não são instituições de caridade que tenham por objetivo dar sustento a autores que gostariam de vender milhões de exemplares de sua última "obra-prima". E assim é, não apenas na literatura, mas também no cinema, na TV, na música. O popular e o bom não são sinônimos... ou são? O que é uma boa literatura? O que é um bom filme? Ou uma boa música? Seria arrogância dos críticos classificar um livro que vende milhões como algo ruim por não apresentar um estilo narrativo sofisticado? Algo que vende milhões, agrada milhões. Qualidade seria, por outro lado, agradar um número grande de consumidores? E se desagrada a "elite intelectual", os críticos, deixa de ser bom, apesar de popular? Não ouso entrar nessa discussão, que considero meramente conceitual. Afinal, trata-se, no fundo, de se chegar a um acordo sobre qual o conceito de "bom", qual o conceito de "qualidade".
Mas digamos que, por ser arte, a literatura tenha sua qualidade vinculada à estética, ou seja, o bom é o belo. Novamente caimos num problema. A estética é cultural, é ensinada ao indivíduo e não é intrínseca ao objeto da análise. A moda é o exemplo mais fácil a ilustrar isso. O que foi belo um dia, soa ridículo hoje. Eu não teria coragem de sair na rua, em 2013, com um paletó com ombreiras, bigode estilo Chaplin ou costeletas estilo D. Pedro I. Mas tudo isso teve o seu tempo. Tiremos as roupas para outro exemplo de estética temporal. As musas da década de 50 tinham carnes e curvas voluptuosas que hoje são taxadas de gordura localizada a ser extirpada na faca, para desespero das gostosonas e delírio dos cirurgiões plásticos.
Expostos os motivos pelos quais não quero questionar aqui o que é belo ou de qualidade, para que possamos prosseguir, vamos utilizar o seguinte conceito: tem qualidade aquilo que é reconhecido como bom pelos críticos literários.
Quase todos os maiores bestsellers da história são considerados ruins pela crítica, apesar de venderem "horrores". Ao mesmo tempo, obras reconhecidas como geniais vendem pouco. Nesse último caso, misturam-se grandes clássicos da literatura e livros excelentes de autores modernos. A explicação para isso é quase óbvia. A boa literatura é, muitas vezes, densa, pesada, complexa, longa, se esparrama por mais de quinhentas páginas e leva meses para ser lida de forma atenta e dedicada. Há outros casos em que a boa literatura é curta, aparentemente fácil, mas que passa ao leitor menos experiente uma falsa sensação de superficialidade e a obra acaba incompreendida. Deparei-me com dois exemplos recentes: Cândido, de Voltaire, e Satiricon, de Petrônio.
Eu sou leitor, logo tudo isso não me atinge. No máximo me fornece subsídio para elocubrações como esta aqui. Mas e o pobre bom escritor que se frusta a cada retorno negativo da leitura de seus originais pelas editoras? As grandes só publicam o que pode virar bestseller. As pequenas, "independentes", criteriosas, ao ver um bom texto, publicam-no, mas essas não conseguem uma ampla distribuição. Seus livros ocupam as estantes invisíveis das pequenas e moribundas livrarias de bairro, tal qual aquela da Meg Ryan em "Mensagem para você". Por fim, ainda que, por algum acidente, um leitor desavisado chegue a folhear aquela obra fantástica da qual estamos falando, ao ler algumas linhas e não entender a profundidade do conteúdo, devolve o incompreensível à prateleira e pega, por indicação de um amigo, ou da mídia, o bestseller em destaque numa pilha exclusiva no meio da loja. 
Nosso escritor, assim, não é publicado... ou, se é publicado, não é distribuído... ou, se é distribuído, não é vendido... em todo caso, não é lido.
Uma escritora amiga, ao ler "Se um viajante numa noite de inverno", de Ítalo Calvino (resenhado neste blog), teve a seguinte idéia. Que tal acrescentar ao original de seu bom livro (aquele com qualidade, ou seja, impopular por natureza) uns capítulos no início tratando de autoajuda, pornô para mamães, esoterismo, fórmulas para ficar rico ou outro assunto igualmente popular? Os editores, entulhados de originais a eles enviados diariamente, ao ler o início e ver que se trata de algo vendável, aceitarão o livro sem chegar ao início propriamente dito (aquele do livro de verdade, que só começa lá pela página 50)  e o mandarão imediatamente à prensa. Que tal incluir algo do gênero também ao final, caso o editor resolva folhear de trás para frente? Pronto! O livro disfarçado de bestseller em potencial iria, finalmente, ocupar os melhores lugares das melhores livrarias dos melhores shoppings e aeroportos, fazendo a fortuna da minha amiga escritora. Nesse caso, podemos até dizer que os leitores estariam, então, levando não gato por lebre, mas lebre por gato.


Joseph Conrad - O coração das trevas


Quem assistiu "Apocalipse Now", de 1979, e gostou do filme, não irá se arrepender de ler o livro do qual foi adaptado seu roteiro. 
O interessante é que a adaptação, nesse caso, ao contrário de outras versões cinematográficas de romances, transportou a história 70 anos à frente, da selva africana para a selva do Cambodja, do Kurtz agente de uma empresa exploradora de marfim para o Coronel Kurtz da guerra do Vietnam.
A história trata do resgate de Kurtz, que teria ficado louco após anos enfurnado na selva, convivendo com os nativos. Devido à mistura de elementos tão distintos, a aventura e a psicologia, o livro (e seu autor) foram considerados de difícil classificação por aqueles que o estudaram, a exemplo de Ítalo Calvino.
A clima de tensão ao longo da subida do rio rumo ao coração da selva não se atenua em nenhum instante e a psicodelia do encontro com Kurtz é marcante. 
Por outro lado, a narrativa de Conrad é simples, objetiva, sem rebuscos, ainda que feita numa técnica que impressiona. Talvez a origem jornalística do autor ajude a explicar isso. O fato é que quando se inicia sua leitura fica difícil largar o livro. 
Contudo, talvez Conrad tenha sido econômico e sucinto em demasia. A história, às vezes, passa a sensação de que deixa coisa demais a ser imaginada pelo leitor (e o leitor mais distraído pode, mesmo, não conseguir "entrar" na história). A narrativa se torna superficial em alguns pontos, como se fosse um roteiro de cinema ou teatro. Quem sabe, Conrad tenha, no seu íntimo, previsto que sua história seria melhor conhecida não na forma do seu livro, mas na forma do filme do Coppola.

Petrônio - Satiricon


Satiricon é um daqueles livros que está na minha estante desde quando eu era criança. E em todas as minhas idades eu o olhava de soslaio, com um olhar de ignorância maior que curiosidade, e, eu diria, até medo de abrir algo escrito no século I da nossa era. Que diabos haveria ali dentro? Em que linguagem aquilo estaria escrito?
Com a velhice (não do livro, mas a minha), após descobrir que coisas com 2 mil anos ou mais de idade podem ser surpreendentemente modernas e atuais, rompi a barreira dos séculos que me mantinham afastado dessa obra e ousei descerrar aquele sarcófago literário.
Assim como me ocorreu quando li Homero ou Voltaire, constatei que o ser humano de 3.000 AC, do século I e do século XVII é o mesmo. E em todas essas diferentes eras da humanidade surgiram escritores geniais. Petrônio, bem vindo à minha lista!
O livro narra as aventuras de 3 amigos (amigos íntimos, inclusive no sentido sexual da palavra) numa vila romana no século I. A questão da sexualidade é interessante. Já vi comentários a respeito de obras romanas dizendo que elas abordam a homossexualidade. Discordo. Entendo que o conceito de hetero ou homossexualidade sequer existia nessa época, pelo menos da forma como os temos hoje. Sexo era sexo e pronto! Não estava mais associado à procriação que à diversão, e, portanto, pouco importava se era feito entre iguais ou não. Mas, para utilizar os conceitos modernos, digamos que todos os personagens, e, parece-me, toda a população de Roma, são bissexuais ou pansexuais ou que termo se queira dar para aqueles que encaram o que lhes convêm, sem ligar para detalhes de gênero.
Mas a sexualidade não é o tema do livro, mas apenas um dos elementos, o que me leva a desculpar-me por um parênteses tão longo a esse respeito, necessário, todavia, para se afastar qualquer interpretação equivocada que de que o livro teria como um de seus motes a sexualidade em si.
Voltando à história, nossos três protagonistas se metem em confusões sucessivas, a la "Cândido" (de Voltaire), de forma hilária. Fogem da morte o tempo todo. Participam de banquetes e orgias, têm amantes em comum (de ambos os sexos), sofrem de ciúmes, passam fome, levam porrada, e apresentam a malícia e o jogo de cintura que acompanham o ser humano desde priscas eras.
Destaque para o banquete de Trimalchão, um rico sem berço, ex-escravo liberto que herda uma fortuna de seu ex-dono falecido. Um verdadeiro churrasco na laje de uma mansão na favela. Em vez da cerveja e da pinga, claro, o vinho, mas de resto é uma sátira totalmente atual do "novo rico".
Leitura rápida e prazeirosa, com diversão garantida.

Erasmo - Elogio da loucura

Tivesse a expressão "de médico e louco, todo mundo tem um pouco" uma origem literária, esta seria o "Elogio da loucura", de Erasmo de Roterdã.
Incrível ler esses livros escritos há tanto tempo (esse, precisamente, em 1501), e perceber que o ser humano do século XV é o mesmo do século XXI. Apenas o mundo muda, ou, diria, o aspecto material do mundo muda, mas o espírito do homem é imutável. O homem que andava a cavalo, depois a vapor, depois a combustão, depois a jato, era, é e será movido sempre pelas paixões, ou, nos termos empregados por Erasmo, pela loucura. E dela ninguém escapa, do servo ao papa.
E que bom! Nessa sátira ao racionalismo e à filosofia (e, não esqueçamos, ainda não estávamos no Iluminismo), o pensador holandês lança um olhar irônico e impiedoso aos que se julgam sãos. Filósofos, teólogos, a nobreza, o clero, ninguém escapa. Quase todos são loucos, como bem demonstrado pelo autor. E os poucos que não são, sofrem por não serem. 
Só os loucos são felizes. Felizes as crianças, por não terem ainda a idade da razão. Felizes os idosos, por já a terem perdido. Felizes os que, loucos, não pensam nas misérias humanas e com elas não se angustiam. Felizes os velhos que torram sua fortuna com mulheres 40 anos mais jovens, felizes as velhas que acolhem jovens 40 anos mais moços (como diz o ditado, melhor comer filé-mignon com os amigos que carne de pescoço sozinho). Felizes os bobos engraçados, cercados de amigos e risos. Tristes os intelectuais chatérrimos e solitários. Felizes os que não sabem que são infelizes.
A ignorância como anestesia das desgraças, em contraponto à dor que a luz da razão nos traz, é um tema até "batido", mas poucos o abordaram com tanta inteligência, humor e, por que não, loucura.

Ítalo Calvino - Se um viajante numa noite de inverno


Há livros que contam boas histórias. Há livros que discorrem sobre livros e literatura. Há ensaios sobre a experiência de ler. Se pusermos tudo junto num liquidificador, temos "Se um viajante numa noite de inverno".
Ítalo Calvino não é conhecido apenas pelos romances e contos, mas também por seus ensaios sobre a literatura. Nesse livro singular, resolve juntar as três coisas na história de um leitor e uma leitora e suas experiências com a leitura. A mistura, no entanto, está mais para emulsão de óleo e água. É possível destacar, um do outro, dois livros que se entrelaçam. 
Há um romance, propriamente dito, que narra a experiência dos dois leitores, angustiados em deparar com romances que não passam do primeiro capítulo, seja porque o restante se extraviou, seja porque houve uma falha de encadernação, seja porque se tratava de um original que se misturou a outros. A sucessão de inícios sem fim, não tem fim (com o perdão do trocadilho).
Em paralelo, digo, entrecruzando-se nesse romance, há os inícios de romances lidos pelos nossos protagonistas. Esse segundo elemento foi o que efetivamente gostei no livro. Calvino demonstra aqui sua habilidade (que me lembrou Kubrick) em escrever histórias de estilos os mais diversos: romances psicológicos, de espionagem, eróticos, políticos etc. Pode-se mesmo afirmar que "Se um viajante numa noite de inverno" contém dez pequenos contos de alta qualidade. Difícil dizer se as abruptas interrupções de cada um desses dez inícios de romances deveriam ter continuidade, ou se a interrupção é apenas uma forma de final, brusco, que transporta o leitor para suas próprias conclusões.
É um livro peculiar, um romance, uma coletânea de contos e um ensaio sobre a literatura e o mercado editorial, tudo sob uma única capa.

Bukowski - Ao sul de lugar nenhum


Relatar a experiência de ler Charles Bukowski é expôr-se a um grande risco. Bukowski, o poeta do subterrâneo, dos becos, dos porões fétidos, das garrafas de uísque esvaziadas solitariamente ou na companhia de outros seres igualmente "perdidos", pertence àquela espécie dos autores que, ao lado de Jack Kerouac e Henry Miller, são amados e idolatrados por uns, e odiados e desprezados por outros.
Não é todo mundo que se diverte, se encanta ou reconhece a genialidade do seu humor ácido, da descrição fisiológica de nossas necessidades fisiológicas, do trato livre, direto e indisfarçado do álcool, do sexo, da violência, mas, por que não dizer, parafraseando um outro autor do subterrâneo mais próximo, Nelson Rodrigues, da vida "como ela é".
Bukowski destaca-se, todavia, desse grupo seleto de contistas da realidade nua e crua, pelo senso de humor primoroso, não encontrado em seus companheiros de máquina de escrever.
A sátira à sociedade, ao americano "sonhador do sonho americano", à hipocrisia e aos valores pseudo-morais comuns, é colocada de forma brilhante, mas, alerto, indigesta aos estômagos mais sensíveis. 
Talvez ninguém se atreva a descobrir o quanto de suas histórias são relatos verídicos e autobiográficos, vividos ou sonhados pelo autor em suas viagens etílicas. A única certeza é a de que sua vida não deixou de ser pródiga em experiências pessoais necessárias à clareza e precisão com que Bukowski conseguiu retratar, em suas obras, a vida marginal.
Nessa coletânea de contos, ri-se da desgraça, mas, também, mostra-se que a desgraça não é pior que o vazio da vida regrada. Como alertei há pouco, é um livro para ser amado ou odiado, mas, sem dúvida, um livro para ser lido.

Charles Dickens - Grandes esperanças


Esperanças são apenas isso: esperanças. Essa talvez seja a lição, a mensagem que o Charles Dickens tentou, e conseguiu, nos passar ao escrever esse livro cerca de 10 anos antes de sua morte.

Produto da fase mais madura desse grande autor britânico, mais conhecido por seus romances "Oliver Twist" e "David Copperfield", o livro nos traz a vida de Pip, desde sua infância até a fase adulta, sob o ponto de vista do próprio garoto, que narra, em primeira pessoa, suas aventuras, suas paixões, seus medos, seus sofrimentos, seus sonhos e suas frustrações.
Sua história acaba sendo determinada a partir do marco direcional ocorrido ainda na infância, quando, ao ajudar um preso fugitivo, conquista ali o coração do homem que o ajudará depois, anonimamente, dando-lhe, ainda que apenas temporariamente, "grandes esperanças", traduzidas pelo patrocínio de uma possível vida de cavalheiro em Londres.
O sonho, todavia, não chega a ir além das esperanças. A fuga da pobreza da infância daquele garoto órfão criado pela irmã tirana e pelo cunhado bondoso e carinhoso, é povoada por personagens que representam por si mesmos a maldade e a bondade, o justo e o injusto, deixando claro o viés moral da história. Pip representa o ser humano que oscila entre o bem e o mal, a gratidão e a ingratidão, ou seja, o humano mais humano, com seus erros, desvios e angústias.
Além do fugitivo degredado, benfeitor de Pip, Dickens traz à narrativa a Srta. Havisham, uma idosa que, abandonada pelo noivo no dia de seu casamento, enclausura-se para sempre em seu quarto, cercado pelos restos rotos de seu vestido de noiva e pelos restos podres de seu bolo de casamento. Em seu plano de vingança contra a vida e os homens, adota e molda uma garota belíssima, dando-lhe um coração frio e inescrupuloso. Sua cria terá como objetivo vingar a criadora contra o gênero masculino. Pip, nosso protagonista, passa a ser sua vítima: o garoto a ser seduzido, iludido e abandonado por sua amada, Estela, a filha adotiva da Srta. Havisham. 
Mas, nesse livro, nada termina como se imagina ao longo de sua leitura. A expectativa do leitor, frustrada a cada prognóstico que não se concretiza, a cada amor que não se firma, a cada plano que não chega ao final planejado, nos transporta defitivamente para dentro dos sentimentos dos personagens. Experimentamos, assim, o que os próprios personagens experimentam e constatam nas suas vidas e futuros imprevisíveis: que esperanças não passam de esperanças.

Homero - Odisséia


Não me caberia aqui falar de Homero e nem da Odisséia. Um os livros mais lidos, comentados, discutidos e  estudados da história não precisa e não merece a produção de mais uma resenha por um reles leitor qualquer.
Limito-me portanto, a dizer o que eu senti ao ler esse livro, explicar por que resolvi o ler e o que mudou em mim após sua leitura.
Já há algum tempo na minha estante, a Odisseia lançava-me seus olhos milenares a cada vez que eu passava em frente à estante na qual dormiam Ulisses, Telêmaco, Penélope, cíclopes e outras figuras. Mas não foi esse olhar sedutor que me venceu. Foi ao ler "Os sofrientos do jovem Werther", de Goethe, e ver ali a paixão do protagonista por Homero, o qual ele carregava debaixo do braço para onde quer que fosse, que me interessei em espiar por cima do ombro de Werther para ver o que tanto o encantava.
Tomei coragem. Como seria minha primeira leitura de um clássico grego, senti um certo medo do que haveria à frente; senti-me diante das brumas sobre o lago navegado por Caronte. Mas logo às primeiras páginas, a névoa de dissipou, descortinando uma narrativa leve, divertida e fácil. A perfeição do roteiro, resultado de três mil anos de lapidação, fez dessa jóia uma das mais bem acabadas do baú de tesouros da literatura. Impossível não se deixar seduzir pela história e pela forma com que essa história foi registrada, uma prosa poética maravilhosa. 
Depois dessa experiência, abre-se um apetite voraz por tudo que é grego ou romano. Parti então para mil anos adiante, para o século I de nossa era, para ler Petrônio, mais precisamente Satiricon, o qual também me olhava enamorado da mesma estante, e que, é claro, também faz referência a Homero e à Odisséia. Mas isso é uma outra história...