terça-feira, 30 de abril de 2013

Meu romance com os romances

Há quem goste de contos. Há quem goste de crônicas. Outros amam a poesia. Mas há quem prefira, como eu, romances.
Claro que me divertem as curruíras nanicas do Dalton Trevisan, os contículos pulguentos do Charles Bukowski e a cadeira de balanço do Carlos Drummond de Andrade. Também contos maiores, clássicos, do Anton Tchekhov, ou modernos, da Isabel Allende. Há contos enormes, mas que se leem numa só sentada, ou deitada. Que se lê o prefácio em Curitiba e o posfácio em Brasília, em que os personagens se conhecem em São Paulo e ao pousarem no Rio já foram felizes para sempre.
Como nos relacionamentos, há os rápidos e intensos, cujo prazer chega num pé e sai no outro, e há os lentos, duradouros, sólidos, que vão conquistando devagar, dia após dia, página após página. Assim é a relação com o romance, estrutura maior e mais complexa, recheada de contos, às vezes também crônicas, e muitas vezes poesia, ainda que em prosa.
É preciso ler grandes romances para entender do que estou falando. Grandes em qualidade e em tamanho. Aqueles bem grossos, assustadores aos coraçõezinhos desacostumados, os clássicos, aqueles que já passaram pelo crivo da História. Mas é como ir à academia depois das férias. Só dói no primeiro dia. 
Você precisa se envolver com os personagens, criar uma relação com eles, sentir saudade deles, sofrer junto, vibrar com suas conquistas, chorar suas dores, planejar suas vinganças, reprovar seus erros, reconhecer seus méritos, rezar para que se salvem. É preciso torcer pelo casal que quer ficar junto, pelo pai quer resgatar a filha, pelo detetive que persegue o autor do crime, pelo rei que defende seu reino, pela mãe que defende seu filho, pelo louco que se acha são. É preciso morrer as mortes dos personagens, e morrer de curiosidade pelo desfecho da história. Deve-se entrar nas páginas, molhar-se na tinta, respirar o ar que tomava o quarto do escritor, sentir sua pena riscando nossa pele. 
Tudo isso exige tempo. Exige que o livro durma ao nosso lado, em nossa mesinha de cabeceira, nos acompanhe na mochila ou na bolsa a todo lugar, nos faça companhia nas filas do banco e do supermercado, ande conosco no ônibus e no metrô, viaje conosco na ponte aérea ou no voo intercontinental, tome sol conosco na praia ou na piscina, vá conosco ao banco da praça ou do parque, ou simplesmente sente conosco no sofá da sala.
Na rapidinha do conto, na frieza da crônica e na beleza curta de um poema, viaja-se, mas é pegar um táxi, ou ir a pé ali na esquina. Ou é ir longe, mas num foguete à velocidade da luz. Não é melhor, nem pior. Mas é sexo rápido, na escada, no carro. Tira-se a roupa e já se sente o orgasmo. 
No amor leitor-romance, o sexo é tântrico, dura dias, semanas, meses ou anos. É namoro firme, relacionamento sério na rede social, anel dourado no anelar direito, e depois no esquerdo. Talvez o romance tenha esse nome porque nos conquista, nos enamoramos dele, e com ele casamos até que a morte nos separe...


sexta-feira, 26 de abril de 2013

Filhos e poemas


Amor e dor são ingredientes presentes nas receitas de filhos e poemas. Para facilitar, vamos escrever uma só. Faça um deles, ou faça os dois ao mesmo tempo, a seu critério.

Comece pelo amor. Será preciso aqui um trabalho a quatro mãos, ou dois corações. Como toda receita complexa, comum em pratos sofisticados, sem um ajudante, ou melhor, um co-autor, ou melhor, um amante, sujam-se panelas e acessórios e termina-se pedindo uma pizza pelo telefone.
Junte os dois amores num recipiente. Pode ser um parque, uma praia, um avião, um banco de praça, seu trabalho ou mesmo um site de relacionamentos. O importante é que um mestre-cuca enxergue o outro e mais ninguém, independente do tamanho da cozinha e da população em volta. Essa receita, um não faz sozinho, e mais de dois entorna o caldo.
Em seguida jogue as sementes. Podem ser de girassol, de alecrim ou de dó-ré-si-bemol. No caldo do amor, aquecido em fogo brando ou alto, dependendo da pressa e da fome, as sementes germinarão. Um corpinho começará a crescer. Versos e estrofes tomarão forma. Um olhinho aqui, uma palavra acolá. Uma rima emparelhada, outra cruzada. Orelhinhas emparelhadas, perninhas cruzadas. Não dá ainda para ver o sexo.
Mexa sem parar, para não desandar. Se parar não dá liga, vai solar. Também não pare de temperar. Se parar, vai azedar, ou salgar. A massa cresce, o corpo cresce, o amor em forma de ser, ou de poema, intumesce e aparece. Já dá para ver o sexo. Pode ser menino ou menina. Podem ser gêmeos no ventre ou mesmo na poesia. Tanto num como noutro, vale menino com menina, menino com menino ou menina com menina.
O feto e o rascunho viram gente e poema. Corpo completo, cabeça, tronco e membros, dísticos, quartetos e sextilhas. Já não cabe mais na panela, e nem no ventre, e nem na mente. E vem a dor. Prepare-se, este é o passo fundamental, o toque de mestre, o tempero final.
As contrações nas entranhas, no alto e no baixo ventre. Algo dentro de nós cresceu demais e tem de sair. A dor do parto, a dor que expulsa o filho do útero materno, a dor que jorra pela ponta dos dedos no sangue que transcreve o poema em letras escarlate. A poesia que toma forma, a semente que vira gente. Já não cabe em mim e nem em ti. É preciso dá-la à luz, levá-la à mesa, com choro e riso, velas e um bom vinho.
E olhamos aquela coisinha inacreditável que saiu de nós. É a cara do pai! Não, é a cara mãe! Tem traços dos dois! Cada linha, cada pausa, cada rima, cada acento, cada erro, cada acerto. Nos vemos ali. É nosso amor que tomou forma, de criança, de prosa ou de verso.
Sirva enquanto quente, beije, abrace, cheire, leia, releia, aproveite. Depois o filho cresce, o poema envelhece. Os traços mudam, as traças traçam. A tinta desbota. Mas sempre serão nossos filhos, nossa obra-prima, tanto a criança, para sempre criança, como o poema, para sempre poesia.
Amor e dor aparecem nas receitas de filhos e poemas. O amor inspira, concebe e gera. O amor cresce dentro de nós até não caber mais. A dor expulsa e pare. É um parto natural. Depois amamos aquele ser, aquele poema que se escreveu. E ele é a cara do pai e da mãe, digo, do amor do qual nasceu.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Eternidade efêmera

Ele acordou outro dia e olhou para o teto, a página em branco na qual costumava escrever seus mais repentinos pensamentos matinais. Percebeu que não queria mais o resto, só o certo.
Conhecera-a e reconhecera-a singular, diferente, única, também farta de começos e fins, e que buscava, enfim, o transcendental, aquilo que não nascia do físico e dele não herdava seus castelos de areia..
Aquele homem percebia que já se havia satisfeito em tudo. Sua vontade dali em diante, atendendo a sua própria e sincera convicção volitiva, encerrava-se na vida ao lado daquela e de mais nenhuma. Sua libido não mais respondia aos estímulos fugazes de traseiros rebolativos, pernas expostas, olhares vulgares ou esta ou outra artimanha feminina.
Seu único sexo longe da amada era o solitário e em sua homenagem, na lembrança de sua imagem, do cheiro, do decote generoso, da maciez da pele da parte interna das coxas, das mãos leves e carinhosas, dos lábios entreabertos num convite, do olhar hipnotizante e da Yoni perfeita..
Ao encontrá-la, reafirmava seu sentimento pela presença. Ao despedir-se, convencia-se pela ausência. Assim, o prazer do encontro e a dor da distância eram sentimentos opostos que em soma e subtração resultavam no convencimento do amor que nascia para uma vida eterna.
O medo de que seu sentimento fosse filho único, sem gêmeo no ventre de sua amada, assim como dois vulcões dificilmente entram em erupção ao mesmo tempo, exigia-lhe provas de amor todo dia, até na madrugada exausta..
Certa vez, teve a certeza de ter-se enganado quanto ao amor, ou acertado quanto ao seu medo, ao encontrar no diário de sua diva, dirigidas a outrem, as palavras que tanto sonhava em ouvir. Cartas que ela escreveu, mas não me escreveu.
Razão e sentimento imediatamente em postos na batalha, como crianças empunhando espadas de madeira. Não se golpeavam mutuamente, mas sim a sua cabeça, afastando-lhe o sono e o sossego.
Como Otelo, ressonavam-lhe na mente intrigas e suspeitas, não de traições, decerto, mas de que sua musa não era muda por si, mas abstinha-se de falar apenas a ele. Ela tinha em seu intimo os sonhos que ele lhe cobrava, mas neles ele nunca aparecia.
Inobstante a convicção de que o amor só é explicável por aquilo que não é descritível, associava a esse amor, no afã de justificá-lo, infinitos atributos, do caráter aos lindos olhos, do talento aos lábios solícitos, entreabertos, do espírito ao corpo.
Mas quando o amor se rende à razão, melhor seria acordar dessa eternidade efêmera. Coração não pensa e cabeça não sabe amar. Se pensa, não ama, se ama, não pensa. Se ama, não esquece, se ama, não acorda. Não sei brincar de nunca mais descontar no corpo o tesão que se sente pela alma.