
Outro dia assisti um filme que muito me impressionou: "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" (Eternal sunshine of the spotless mind, 2004). Trata-se da história de um casal que, terminada a relação, resolve apagar um ao outro da memória através de um tratamento médico especial. O processo consiste em localizar no cérebro as memórias a respeito da outra pessoa e destruir as respectivas conexões nervosas, e, assim, os laços afetivos, as lembranças, tudo, tornando o ser outrora amado num ilustre desconhecido.
Outro dia ocorreu um fato que também muito me impressionou: a morte prematura de um colega de trabalho num estúpido acidente de automóvel. Trata-se da morte de alguém de quem eu gostava, um amigo com quem convivia diariamente, alguém que de repente sumiu da face da terra, morreu.
O filme e o fato então conectaram-se na minha cabeça em alguma ligação nervosa. Nervosa nos dois sentidos. Desde então surgiu em mim um pensamento intrigante. Passei a ver uma relação íntima entre esquecimento e morte.
Quando uma pessoa morre, nunca mais a vemos, nunca mais a ouvimos, nunca mais a tocamos. Quando apagamos uma pessoa da nossa memória, ou melhor, quando desejamos apagar uma pessoa da nossa memória, quando buscamos nunca mais vê-la, dela nunca mais ouvir falar, esquecer que um dia a tocamos, não seria o mesmo que matá-la? Um morto e um esquecido não teriam sobre nós o mesmo efeito: a ausência total e eterna a todos os nossos sentidos?
Esquecer alguém não é o mesmo que matar esse alguém?
Por que as pessoas querem matar aquelas que um dia amaram? Nunca recebi a notícia da morte de alguém que eu tenha amado no passado (falo aqui exclusivamente do amor romântico), mas tenho certeza de que não seria uma notícia nada prazerosa, muito pelo contrário, por mais que o amor em si estivesse morto e enterrado (com o perdão do trocadilho).
Melhor se fizéssemos como num outro filme, "O vingador do futuro", onde implantavam-se memórias de viagens, fazendo-se a pessoa acreditar que havia viajado para tal e tal lugar, por ter em sua mente lembranças claras e indistinguíveis daquelas produzidas por experiências sensoriais reais. Se eu lembro que fui, então eu fui.
Por que não apagamos, portanto, as lembranças ruins e mantemos as boas? Por que não lembrar dos beijos gostosos, do toque mágico, do olhar único, do sexo maravilhoso, do prazer da companhia, das afinidades, das conversas interessantes, dos motivos que fizeram nascer a paixão e o amor por aquela pessoa?
Cultivar as boas lembranças ou as ruins é uma opção nossa. E, como num cultivo agrícola, é preciso o tempo. O tempo: a grande máquina manipuladora da memória. O tempo nos faz, naturalmente, cultivar o que foi bom e matar o que foi ruim.
Depois de afastados de uma cidade na qual moramos há anos, tendemos a achar que o trânsito nem era tão ruim, que o lugar nem era tão violento, que o clima nem era tão insuportável.
Passada uma época, tendemos a achar que tudo antes era maravilhoso, "bons tempos aqueles ..." dito com um sorriso quase imperceptível e os olhos brilhando focados no infinito. A década anterior era melhor, o século que não vivi era certamente melhor, o que me remete a mais um filme, extraordinário: "Meia-noite em Paris".
Quando crianças, queríamos ser adultos. Hoje, lamentamos não poder voltar no tempo e voltar a ser criança. A infância, guardada na memória e embelezada pelo tempo, nos soa tão linda e perfeita!
Tudo isso não seria apenas uma bela peça pregada pelo tempo e pela nossa memória?
Voltando ao "Brilho eterno de uma mente sem lembranças", há uma cena em especial da qual gostaria de falar: o herói da história chega ao local de trabalho da ex-namorada. Esta já havia feito o tratamento que apagara por completo qualquer lembrança sobre nosso herói. Ela o olha, indiferente, e pergunta o que ele deseja, como se nunca o tivesse visto antes. Ele agora era um desconhecido. Nosso herói, por sua vez, olha atônito sua ex-amada, dá meia volta, e vai, ele mesmo, não restando outra saída, "curar-se" pelo mesmo tratamento.
O filme é de ficção, é claro. Não sei se um dia a medicina terá esse poder que nem o tempo tem de apagar por completo nossas lembranças, mas se um dia tiver, não o invocaria. Permitam-me estar em paz com meus amores passados, permitam-me lembrar das coisas boas que vivi, das pessoas que amei, permitam-me curtir minha própria história. Fui eu quem a construí, às vezes sozinho, às vezes acompanhado. E essas lembranças, eu as quero. Quero que me acompanhem... até a morte.
? será que os comentários são esquecidos pelo blog ou ficam em alguma oculta memória?
ResponderExcluirCada pessoa reage diferentemente. Há alguns que, para conseguir viver o presente e deixar vir o futuro, precisam colocar as boas lembranças em uma caixa, as palavras, as fotos, e esperar a ação do tempo,que ás vezes, é longa, para revê-las. Esses ou essa não conseguem conviver com aquela imagem todos os dias presente nos difíceis tempos de despedida nos tempos da da web, sem um sofrimento profundo. Guardar as lembranças temporariamente numa caixa não significa apagá-las, não significa negar o passado, mas permitir que ele se torne passado, para libertar-se. Mas é demais esperar que se compreenda o universo do outro, a maneira de amar, a dor, a solidão do outro.
ResponderExcluirAh, e esse tipo de gente, muito rara e antiga atualmente, não consegue se distrair do que verdadeiramente amou ou ama jogando videogame. Esse tipo de gente, se não pode ser mais amada de verdade, prefere ser esquecida, guardada numa caixa, que pode ser aberta ou não algum dia. E assim não compreende por que os jogadores de videogame insistem em ser por ela cotidianamente lembrados. Tédio? Vaidade?
ResponderExcluirNão à toa, a 'memória' - esse fissurado, porém delicado e necessário relicário, o qual compreende os nossos rastros, passos, forjando nosso destino e riscando (de modo rasurado e errático) a nossa história - deriva da deusa Mnemosine, mãe de todas as musas, a contraposição mítica a 'Léthe', o rio do esquecimento, conforme se acreditava na Grécia antiga. Pois Léthe escoava no mundo subterrâneo, conferindo esquecimento à alma dos mortos destinados ao Hades. Daí, surgiu a 'alétheia' grega (note o prefixo 'a' como noção de 'verdade' no sentido de 'desocultamento', ou seja a oposição essencial ao 'esquecimento' e a negação da história.
ResponderExcluirAssim prosseguimos...felizmente negando Léthe e o cajado do apagamento arbitrário. Em nome das musas e de nossa própria história.