sexta-feira, 27 de junho de 2014

Alianças

Desde priscas eras (parafraseando um certo professor de Direito que admiro muito), o homem (e a mulher - dada a pressão recente para que ao masculino não seja permitido representar o ser humano linguisticamente) adota símbolos de compromisso, de posse em relação ao outro ou às coisas que possui (ou pensa que possui).
Tal qual marcas de ferro em couro de boi, coleiras de couro em pescoço de cachorro, capas distintivas em cadernos de escola ou etiquetas com nomes em malas de viagem, colocamos em quem nos interessa marcar nossos sinais de posse e propriedade.
Alianças e anéis de compromisso são as marcas de ferro mais tradicionais. Mas há quem queira algo que não escape do dedo e role ao primeiro bueiro. Tatuagens com o nome do amado-proprietário bem à mostra, no braço, no pescoço, ou, num requinte de crueldade, nas partes mais íntimas, para que sejam mostradas bem na hora H a parceiros subsequentes. Tatuagens que viram manchas escuras e disformes em vãs tentativas de correção ortográfica. "O que é isso?" "Uma tatuagem, meu bem!" "Mas o que significa?" "Uma nuvem negra de chuva, não está vendo?".
Enquanto válidas, são lindas. Expiradas, o nome do falecido no mármore da pele soa mais como um epitáfio.
Melhor usar marcas genéricas que sobrevivam às mudanças: "Sou sua", "Vem, meu bem!", "Paixão da minha vida" ou algo assim, sem endereço certo. Pode-se também, com algum (enorme) trabalho adicional, só se relacionar com pessoas de mesmo nome. Para tornar a façanha menos impossível, deve-se escolher um nome comum. Prefira Maria a Vaudelina, João a Ronicleiton. Dessa forma, pode-se reutilizar, reciclar, sendo politicamente correto, ecológico e evitando o desperdício de tinta de tatuagem, a marca do antigo dono. Cuidado apenas para não mostrar a etiqueta antiga na primeira noite. Deve-se ocultá-la até o dia em que seja conveniente dizer sem levantar suspeitas "Meu bem, olha a tatuagem que fiz para você! Não ficou linda?". Desnecessário dizer que a tatoo com o nome reciclável deve ser restaurada de tempos em tempos a fim de parecer sempre nova.
A tecnologia, todavia, tem facilitado esse doloroso processo de marca-desmarca. Não se marca mais a ferro no próprio couro, mas na pele cibernética das redes sociais. Um clique e surge uma nova etiqueta, uma nova aliança, um relacionamento "sério" com alguém, noticiado globalmente a familiares, amigos, inimigos e desconhecidos. Outro clique e tchau amor da minha vida! Novo status: solteiro(a)! Uhuuu! Na pista de novo e pegando geral, passando o rodo! Após uma noite inesquecível, novo clique e... e depois e depois e depois, sempre mais do mesmo. A internet em nuvem chovendo na forma dos amores líquefeitos de Zygmunt Bauman.
Vivemos na sociedade do anel virtual, a internet é a nova senhora dos anéis (não resisto a esse trocadilhos infames). Mas é no mundo real que brilha ainda o ouro da tradicional e inigualável aliança de casamento. Status algum do mundo cibernético conseguirá superar a força de tal símbolo. As bem casadas mal coitadas do José Avelino Dias levantando xícaras e mostrando "distraidamente" o dedinho reluzente em grosso dourado, mortas de orgulhosas. Porque o prazer não é só de quem marca, mas também de quem é marcado.
Seja na realidade de nossas mãos calejadas, seja na fumaça etérea de nossas páginas virtuais, fato é que nem sempre tudo é para sempre. E, se o laço acaba, que se parta a aliança e fiquem cá os dedos. Porque, afinal, ninguém é de ferro!

2 comentários:

  1. Esse seu texto me fez lembrar dos "cadeados do amor" que alguns casais estão colocando na pequena ponte que há no laguinho do Parque da Cidade, já viu? Meio que imitando o que fizeram numa ponte do Rio Sena?
    Será que eles não viram as notícias de que o peso dos "cadeados do amor" está abalando a estrutura da ponte de Paris? Será que eles não percebem que o amor tem de ser leve? E o quanto é ridículo você querer amarrar alguém da forma que esses cadeados remetem? O que aconteceu com o "seja eterno enquanto dure" do nosso poetinha?
    E como vc disse, com a mesma avidez que que as pessoas tatuam em suas carnes o nome dos amados, elas trocam o status do FB para solteiro.

    É esta nossa modernidade líquida em que tudo é volátil, inclusive as relações familiares, que criou os amores líquidos. Tudo é consumir e possuir, até mesmo os sentimentos mais gostosos. Triste né? muita "liquidez" para Bauman analisar em seus 500 livros rs.

    Eu acredito que o amor, além de tudo, é uma escolha. Uma escolha que você faz todos os dias quando quer estar do lado de alguém. Acho juvenil e provinciano demais essas demonstrações de posse.
    Não que eu nunca tenha tido meus momentos ridículos, eu lia capricho qd era menina rs, mas amadureci.

    Falou tudo com esta frase: "E, se o laço acaba, que se parta a aliança e fiquem cá os dedos. Porque, afinal, ninguém é de ferro!"

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  2. Parabéns pelo texto para males pela(s) finitude(s).

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