segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Coração Balão

O amor é um gás
ocupa todo o espaço
à frente, acima, abaixo e atrás
no coração hospedeiro
agitado, expande-se
comprimido, esquenta
ferido o coração
escapa por qualquer fenda
Será que o coração aguenta?

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Tacape


Um dia desses um amigo veio a mim se queixar dos eventos sociais de que a esposa lhe obrigava a participar. Eram jantares da família dela, almoços dos colegas do trabalho dela, aniversários dos sobrinhos dela (sim, aqueles em buffets infantis), e todo tipo mais de encontro no qual, por falta de intimidade e de passado com os demais presentes, o tempo custa a passar. E custa caro.
Minutos intermináveis nos quais todos os pensamentos filosóficos, sociológicos e antropofágicos, digo, antropológicos a respeito das relações humanas nos vêm à mente. Por quê? Por que estou aqui? 
Nas relações do jogo de favores, das trocas de obrigações, das demonstrações de amor através do sacrifício, das cessões e consentimentos, concessões e resignação, cada favor realizado é um favor a ser cobrado, cada doação é um direito a retribuição a ser lembrado.
Na contabilidade do toma lá dá cá, os créditos nunca são esquecidos e nem os débitos perdoados. Auditoria implacável que exige o ajuste de contas diariamente. Livro-razão? Não. Está mais parfa livro-emoção.. É puro instinto de posse e de necessidade de provas por parte do outro. Apenas o sacrifício alheio nos contenta e satisfaz. 
O homo sapiens do século XXI ainda usa seu tacape e arrasta parceiros pelos cabelos.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Tô chegando!


Ah! Que saudade de ti
minha dama fiel
que a ninguém permite que se acoste
exceto eu
que a ninguém permite que se enrosque
minha linda
que no meu quarto
me espera
não importa por onde eu ande
não importa aonde eu vá
espera a minha volta
sempre pronta
pernas firmes
ancas largas
onde caibo inteiro
e me deito
e adormeço
e sonho
e quando longe contigo sonho
e te desejo
e ao chegar te vejo
em brancos cetins
ou algodão ou afins
me atiro sobre ti
minha deusa
e peço que me abrace
e me aqueça
e me descanse
e me afogue
em teus lençois
até de manhã!

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Olhar


Aqueles olhos fugidios... tão fácil e tão difícil olhá-los.
Correm como crianças tímidas, voam como pássaros selvagens, fogem como o tempo.
Oferecem seu flanco, dão as costas, não se entregam.
O tímido olhar sobre o novo. O novo que, por ser novo, é tudo. É euforia, é alegria, é prazer, mas não é amor.
O sinal do amor está no olhar. Na capacidade de fixar o olhar no outro, sem o desejo de desviar, sem a necessidade da fuga. No desejo e na possibilidade de calmamente e pacientemente apreciar o olhar do outro, sem pressa, num diálogo lento, profundo, sereno e furiosamente silencioso.
Movimento apenas o suficiente para ir de um olho ao outro. Não há fuga nem para os lados, nem para dentro. Não há esquiva nem medo.
As pupilas dilatadas invadindo a íris, tomando conta, na expansão que visa captar tudo, cada cor e cada ponto do outro.
Olhar que olha, que lambe, que cheira, que fala, ouve e ama.
No rosto, apenas um sorriso sutil, velado... ou não, um sorriso escancarado, mas apenas um sorriso.
O silêncio deve ser mantido, pois os olhos pedem atenção e concentração. Nenhuma energia deve ser desperdiçada em qualquer outro sentido. Nenhuma perturbação é tolerada.
O olhar é o único leito por onde escoar.
Como o olhar do náufrago para a ilha no horizonte.
Como o olhar do crente aos céus.
Como o olhar da mãe para o bebê que dorme.
Como o olhar da criança para o brinquedo predileto.
Como o olhar do cão para o seu dono.
Como o olhar do filho para o pai que chega.
Como o olhar para alguém querido no leito de morte.
Como os olhares que substituem os corpos, no pesadelo refrigerado de Henry Miller.
Como o olhar de Maria de Magdala para Jesus, no evangelho segundo Saramago.
Como o olhar cinquentenario e incansável de Florentino Ariza para Fermina Daza.
O verdadeiro amor só se manifesta por esse meio.
Abraços, carícias, beijos, nada disso realmente importa. São acessórios, coadjuvantes de algo maior. Por si só não amam, e o amor independe deles.
Porém, não se prescinde do olhar.
Porque é o único caminho para o outro, a única porta de entrada, a única estrada, a ponte sobre o fosso, a passagem na muralha, a barca de Caronte, o único caminho possível, o leito natural do rio, a trajetória implacável do raio, o caminho suave e lento da gota de orvalho.
Porque o amor está no intangível, no inexplicável e no indescritível. Não se pode percebê-lo, não se pode tocá-lo, não se pode sentir seu gosto, não se pode cheirá-lo, apenas sentí-lo através do olhar.
A textura, a temperatura, o gosto, o cheiro, tudo isso que se toca, se lambe e se cheira é apenas corpo, pó em forma de vida. O contato com a alma é etéreo. A alma não se toca, nem sequer se vê ou se enxerga, apenas se olha.
E o olhar do amor são dois olhares. Não se olha sozinho. É preciso um olhar no olhar do outro. São duas janelas abertas para que corra o vento, para que se olhe através da carne e se perceba a essência e a verdade.
Se você consegue olhar assim, se você realmente se sente conectado assim, se o outro também o olha, e os olhos se perseguem e não se esquivam, e se um sorriso acompanha esse olhar, e se uma paz nesse momento desce como um manto e dá abrigo a esse olhar mútuo, recíproco, cúmplice, se tudo isso acontece assim, desse jeito, então aconteceu o amor.



segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Jornada mágica

O amanhecer preguiçoso, feliz, com o passado ali presente,
O jazz que anunciava o que vinha, um presságio,
Bukowski vestindo uma estante da cabeça aos pés,
A vida simples falando de coragem, de livros, de perdão e de alimento,
A música nas ruas,
As pessoas, vivas, nas ruas,
Todas as cores e credos nas ruas,
O festival de rock, tão cheio de diversidade,
O solo inesperado numa bateria no primeiro andar de um hospital em ruínas, e a gostosa sensação de tocar onde menos se espera,
O cachorro quente que foi um delicioso almoço,
O sol escaldante que atravessou obstáculos e me alcançou por uma fresta,
E eu rindo do desejo de alguém pela chuva,
Aqueles olhos da cor do céu e do mar, do horizonte, olhos em preto e branco iluminados pelo sol,
Aquela beleza ruiva que irradia e contamina tudo,
E tudo em volta então é belo, o belo e o feio.
O "eu te amo, estou com saudades" da filha amada,
O simples flanar na companhia certa,
A escada para o céu,
A lembrança da peça encenada entre os mortos na noite anterior, assistida entre vivos queridos de longas datas,
E sentindo-me tão vivo,
E a peça era sobre outra jornada, tão triste e ao mesmo tempo tão bela,
E o filme sensacional que me marcou para sempre,
A história da busca, das escolhas,
Assistido onde deveria mesmo ter sido, na rua da diversidade, da juventude, dos contrastes, dos estudantes, dos bêbados, dos loucos e de qualquer um e de todos, a velha Augusta,
O encontro com Saramago, Wilde, Gorki e Baudelaire nos sebos de calçada, e o convite aceito de que viessem na minha mala, junto com Kubrick.
Aquele cheiro inebriante sempre presente,
Aquele riso tímido sempre presente,
Aquele olhar furtivo sempre presente,
Um dia de música, de paz, de surpresas, de felicidade, de gozo.
Peace, love, joy, como aprendi em San Francisco.
A companhia perfeita, um espírito distante que se materializava tão real e presente,
Em paralelo, a leitura do pesadelo refrigerado de Henry Miller, transportando-me por outra estrada, por outra jornada,
E aqui um dia memorável, uma jornada inesquecível, une journée magique, nem Ulysses a teve, nem a de Harry Haller foi tão louca,
Um tal estado de elevação que nem o deserto de Rimbaud e nem a floresta de Sidartha ocasionariam,
Bukowski sairia daquela estante e o curtiria,
Kubrick sairia da mochila e o filmaria,
Baudelaire, extasiado, comporia versos,
Um dia que não terminou,
e nem nunca terminará,
Um passado que permanece e se estende ao futuro.
...
O tempo enlouquece.
A ampulheta cai e a areia, sem saber para que lado ir, não vai a lugar algum, baixa os olhos e se dá por vencida, talvez ela mesma cansada de tanto correr e escorrer.
Às vezes o tempo pára, na sua frente, te olha, sorrindo para você, te acaricia o rosto, te beija, te afaga e te diz: "não se preocupe... estou aqui... não vou embora... durma e sonhe!"


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Se eu fechar os olhos.


E se eu fechasse os olhos?
O teto do meu quarto poderia ser o teto do teu quarto.
O lençol embaixo do meu corpo poderia ser o teu lençol.
Ao meu lado poderia estar, se bem imaginado, tu, dormindo.
E não de fato, mas de imaginação, eu estaria não aqui, mas aí. Aí mesmo onde eu gostaria e por isso imaginaria estar.
Basta fechar os olhos.
E tu não estarias aí, mas aqui.
Tu estarias comigo, e não com... não sei quem.
Basta imaginar que nada acabou. Que ainda te tenho. Que ainda me tens. E que ainda é a primavera do ano passado. E que o amor passado é amor presente.
Basta fechar os olhos e o coração se cura, se alegra. 

Basta fechar os olhos...


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Minha árvore de Natal


Na raiz, o Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, afinal é da língua que a árvore de livros puxará sua seiva.
Subindo pelo tronco, são todos livros que eu já li. Eu queria uma árvore que eu conhecesse por fora e por dentro.
O tronco começa com livros robustos, para dar firmeza. Ana Karenina, do Tolstoi, porque Natal lembra família e afinal, como Tolstoi nos ensina na primeira frase do livro, "todas as famílias felizes são iguais. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira."
Depois, a coletânea da Jane Austen, porque Natal lembra Ding-o-bell, que lembra a língua inglesa, que lembra sua maior escritora.
A  fugitiva, quinto volume de Em Busca do Tempo Perdido, do Marcel Proust, por ser o escritor mais elegante que conheço. Sua prosa impecável dá charme à árvore.
Cem Anos de Solidão, do Gabriel Garcia Marquez. Sem ele a árvore não seria tão fantástica.
O Grande Gatsby, do Francis Scott Fitzgerald, dando glamour a esse vegetal.
Odisséia,  de Homero, narrando a volta de Ulisses à sua árvore de Natal.
Ilusões Perdidas, do Honoré de Balzac, lembrando-nos que a vida não é feita só de natais.
O Lobo da Estepe, do Hermann Hesse, livro em cuja casca gravo meu nome.
Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Homenagem póstuma ao protagonista do livro.
Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, mostrando-nos o que será dos nossos natais um dia.
A Metamorfose, do Kafka, numa referência à própria transfiguração dos livros em galhos e folhas.
Recordações da Casa dos Mortos, do Dostoievski, porque Natal lembra neve, que lembra Sibéria, cenário desse livro.
Histórias de Cronópios e de Famas, do Julio Cortazar, porque só um cronópio como eu teria tido a idéia de vincular esse livro ao Natal.
Doutor Fausto, do Thomas Mann, porque é preciso um pouco de música para se fazer Natal.
Viva o Povo Brasileiro, do João Ubaldo Ribeiro. Afinal, a árvore é brasileira. Viva ela!
On The Road, do Jack Kerouac, porque acima de tudo essa árvore é uma grande viagem.
Por fim, no galho mais alto, o grande Charles Bukowski e seu Ao Sul de Lugar Nenhum trazendo à tona e ao posto mais alto os subterrâneos da vida.
E como em toda boa árvore, nela pousa um passarinho: um poema em forma de caixinha de presente da série "Escritos para uso pessoal e doméstico", da escritora goiana Cássia Fernandes.